terça-feira, 3 de novembro de 2015

Uma concepção estética do mundo, a partir de Cortázar



Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? O que é o homem? O que sou eu? Estas são as principais perguntas feitas ao longo de todos os tempos, por todos os homens. É a partir deste questionamento inato que nós, seres humanos, nos projectamos e nos alistamos face ao mundo. É a partir destas perguntas que criamos um mundo, só nosso, onde tentamos consecutivamente arranjar respostas. Alguém conseguiu até hoje? Não, até hoje ninguém foi capaz de responder inteiramente a nenhuma destas questões. No entanto, não é por isso que deixamos de as formular.
Somos ‘seres-no-mundo’, seres inscritos num universo do qual não podemos fugir. Somos automaticamente entregues ao mundo desde que existimos e precisamos de aprender a viver nele. Todos tentamos executar essa tarefa da melhor maneira, todos procuramos essa fórmula secreta, a autenticidade desmedida, que talvez ninguém tenha ainda encontrado, mas que não deixa de existir nas consciências humanas como objectivo a alcançar. E é exactamente na procura das respostas que nos entregamos ao subjectivo e onde apreendemos o mundo na sua forma mais pura. Mas, para isso, precisamos de nos despir de todas as regras e convenções estipuladas de forma a conseguirmos construir um mundo que nos revele o que somos ou quem somos. 
Mas que mundo é esse? É exactamente aquele onde diariamente damos passos, onde constantemente somos surpreendidos, onde construímos sentimentos, criamos relações, onde somos assaltados por sensações e onde por vezes caímos na mais pura angústia sem razão definida. E tudo isto é sentido em primeira pessoa dentro de um corpo que é atravessado pelo mundo ao mesmo tempo que o atravessa.
E é esse corpo que experimenta o mundo e que vai arranjando formas de dar forma ao mundo. O Homem tentou desde sempre construir fórmulas que o ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si próprio. E foi através da Arte que conseguiu a melhor expressão subjectiva de si mesmo.
A Arte possibilitou aos homens inscreverem-se no mundo através das sensações que o mundo lhes faculta. A Arte é a sensação inscrita sob uma forma que o artista escolhe para evidenciar emoções e sentimentos. E este processo é o chamado fenómeno estético onde os homens se despem e se expõem numa intimidade incontornável. Mas nem sempre foi assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida em conta, a Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível. Muitos séculos foram necessários para que o homem se pudesse expor, livre de regras e de preconceitos. Na antiguidade a beleza era um a priori antes de qualquer relação sujeito-objecto. A única beleza válida era a beleza ordenada no universo, que seguia regras estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria eram conceitos obrigatórios a seguir na construção de qualquer obra de arte. O Homem não possuía a liberdade de expressão que hoje é concedida à Arte, no pensamento clássico o belo e a arte são algo de supra-sensível, independentes da percepção subjectiva. Só no século XVIII é que se começa a exercer o princípio da subjectividade e da relatividade, o belo e a arte passam a depender do sujeito e das transformações ocorridas dentro desse mesmo sujeito.
O século XVIII é composto por uma dualidade entre o eixo da razão e o eixo do sensível, há a emancipação de uma razão antropológica e uma emancipação dos sentidos. É nesta altura que se começa a dar relevo ao efeito emocional das obras de arte. O efeito catarse é o apelo da arte à emocionalidade dos receptores e o próprio autor da obra está contido nesse efeito. A arte torna-se então uma expressão subjectiva e a estética torna-se uma epistemologia da sensibilidade.
É neste contexto, relativamente próximo, que me inscrevo como receptora de emoções artísticas. E relativamente à literatura como arte, seleccionei um capítulo da obra: “O Jogo do Mundo”, para expor o meu ensaio sobre o Gosto.
Cortázar, no capítulo 73, constrói, sob o meu ponto de vista, uma estética literária que consegue percorrer o belo, o feio, o sublime e o grotesco. Ao ler Cortázar sinto-me atingida por uma força invisível que me denuncia emocionalmente. Sinto-me atingida pela obra, pelas personagens, sinto-me exposta nas descrições e nos sentimentos enunciados, sinto que o meu mundo é assaltado pelas palavras.
E não será exactamente este o efeito esperado de uma obra de arte? Não será perto deste ponto que se desenha o sublime? A grandeza emocional que não cabe em si própria, que tem necessidade de explodir, e pela qual somos atingidos num abraço de sentimentos partilhados.
“Sim, mas quem é que nos vai curar do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de la Huchette, que sai pelos portais carcomidos, dos corredores estreitos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e se anicha nos vãos das portas, como é que vamos fazer para nos lavarmos da sua doce queimadura que continua sempre, que se instala para durar, aliada ao tempo e à memória, às substâncias pegajosas que nos mantêm deste lado, que nos queimam docemente até nos calcinar.”
É o sublime, de mãos dadas com o grotesco, que nos provoca a sensação de profundidade emocional onde somos atacados e arrastados numa experiência que não proveio de nós mas que se torna nossa no experimentar de sentimentos. E é o Gosto na sua faculdade de microscópio do juízo que nos provoca diferentes disposições afectivas face à obra de arte. 
São estas disposições afectivas que permitem ao humano a criação como procura, em forma de interrogação, sobre o sentido de se ser. Todos temos a certeza de uma finitude, a certeza de um nascer e de uma morte e existem muitos seres que, através do gesto de criação, procuram mergulhar no infinito através da própria finitude. Quando pensamos, quando transfiguramos a nossa vida num objecto de arte, há sempre uma ‘reinvenção de mim’ presente nessa obra. O sensível e o inteligível que se convocam, que se invocam e se convulsionam. Somos um corpo que se lança constantemente contra o mundo em busca de si próprio.
Há uma continua interrogação, presente em nós, que nos permite reinventar o mundo, e é aí, nesse lugar, que acontece a origem do gesto de criação, um movimento de um arquivo infinito de batimentos de um coração, que acrescentam mundo ao mundo.
A criação procura sempre algo, transforma a necessidade de nos encontrarmos em beleza e a beleza torna-se então necessária. Mas na origem dessa beleza está sempre a ferida, uma ferida aberta que os Homens conservam em si nesta passagem pela finitude da vida, e a ferida é exactamente essa finitude não explicada que se invoca em cada obra de arte, em cada pensamento artístico, em cada gesto de criação. Gestos que são ‘gestos-palavra’, gestos que dizem metaforicamente o mundo.
Somos um corpo que respira o mundo, o pensamento, a arte e a vida são a mesma matéria, a mesma substância. Somos atravessados por todos os sentidos e significações do mundo. Somos um ser que se joga a si mesmo a partir, e desde dentro do seu próprio corpo. A recuperação do corpo como elemento fulcral do modo como somos e existimos, através da Arte. Passamos a ver a ética como estética da existência, a liberdade e o respirar o desequilíbrio infinito dessa liberdade em todas as possibilidades de ser. A fractura com os esquemas organizativos do mundo é a possibilidade que a Arte nos dá.
“A arder assim, sem trégua, a suportar a queimadura central que avança como a maturação no fruto, ser a vibração de uma fogueira nesta sequência infinita de pedras, vaguear pelas noites da nossa vida com a obediência do sangue no circuito cego.”
Há um tempo indefinido e sem forma que atravessa a arte, e não é possível arranjar-se uma lógica argumentativa para definir este tempo. Há o confronto com uma outra forma de tempo numa obra de arte, o tempo que a obra de arte nos faz sentir, viver, inscrever. E é aqui que acontece a emergência de uma instância poética, o algo que nos atravessa e que cria uma ressonância indefinida de sentido que é conhecimento. A criação em forma de interrogação – o humano em constante busca de sentido.
“A nossa verdade possível tem que ser invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza tura das turas.”
Há um excesso em nós, que o nosso coração não consegue conter e tem que expulsar, exactamente como uma voz que não conseguimos expressar mas que vive em nós, vivemos numa constante luta abissal connosco mesmos. A intensidade de um abismo constante onde caminhamos continuamente, que nos impele a sermos aquilo que não sabemos que somos. Temos em nós a força selvagem das emoções em estado bruto e temos que a canalizar de alguma forma. A nossa imponderabilidade, a nossa instabilidade, a nossa inquietação que se canaliza em obras de Arte onde o gesto criativo se apodera de nós e nos permite a reinvenção do mundo. Cada obra é uma densidade existencial, há algo que permanece e algo que escapa continuamente, um resto de sentido que nos persegue e que não tem lógica argumentativa. O dar a ser o inexprimível no próprio inexprimível.
“Talvez o erro estivesse em aceitar que esse objecto fosse um parafuso só porque tinha a forma de um parafuso. Picasso pega num carrinho de brinquedo e transforma-o em queixo de cinocéfalo. Podia ser que o italiano fosse um idiota, mas também podia ser que ele fosse um construtor do mundo. Do parafuso a um olho, de um olho a uma estrela... Entregar-se ao Grande Hábito para quê? Pode escolher-se a tura, a invenção, isto é, o parafuso ou o carrinho de brinquedo.”
O contacto com o mundo que a arte nos permite e nos dá, é um contacto matricial, como se alguns sentidos ou gestos fossem o início de tudo, como se nesses gestos tudo estivesse em tudo, como habitar o espelho e a fractura do que somos. É o acumular da vida de uma forma completamente diferente, sem perda de nenhuma das suas capacidades ou memórias. Nós somos afectados por sensações que vêm do exterior, estas sensações são caóticas e desorganizadas, mas ao colocarmos estas sensações dispersas, no espaço e no tempo, tornam-se automaticamente percepções. O nosso juízo de gosto está intimamente ligado a estas percepções, e é ao sentir-se afectado por elas que o Homem forma o seu juízo reflexivo. A partir do momento em que aceitamos reflectir encontramos em nós mesmos um sentimento íntimo que torna impossível demonstrar a validade dos nossos juízos. É aqui que nasce a subjectividade, que nos permite a nossa própria reinvenção, a nossa forma de conhecimento a partir da experiência já vivida que se faz presente e guarda em si a intensidade desse gesto, o instante em que marco a minha mão na matéria do mundo.
“É assim que Paris nos destrói devagar, deliciosamente, triturando-nos por entre flores velhas e toalhas de papel manchadas de vinho, com o seu fogo sem cor que corre ao anoitecer, saindo dos portais carcomidos.”
É desta forma que se instaura entre o sujeito e o objecto uma relação estética, acompanhada por um sentimento de prazer, de reconhecimento, uma medida partilhada, uma tonificação de sentimentos co-sentidos.
Alexandre Baumgarten funda o conceito de estética em 1750 e atribui-lhe a seguinte descrição: “a presença de certos objectos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos e ao espírito”. A partir daqui começou a existir uma actividade humana que tinha como finalidade a produção deste tipo de ‘objectos’ específicos da experiência estética. Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis. Assistimos a uma busca propositada de categorias aparentemente extra-estéticas como o horrível e o grotesco, que põem em causa o acerto de que a arte se oriente para a produção da beleza, do prazer e do bom gosto. O sentimento do belo vai-se alargando a outras categorias afectivas, o efeito estético evolui para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos passam a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o grotesco, o sublime... A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de comunicação e a dimensão passional passa a ser a protagonista. A estética passa a ser encarada como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. A estética do sublime passa a ser encarada como uma estética da força, que visa o êxtase, que visa transportar o leitor para uma sensação do absolutamente grande, o que nos esmaga. A estética como uma poética da percepção.
“Arde em nós um fogo inventado, uma tura incandescente, um artifício da espécie, uma cidade que é o Grande Parafuso, a agulha horrível com o seu olho nocturno por onde corre o fio do Sena, máquina de torturas, agonia numa jaula repleta de andorinhas furiosas. Ardemos na nossa obra, fabulosa honra mortal, alto desafio de Fénix.”
Somos seres humanos que não conseguem delinear as linhas obscuras do seu próprio rosto, vivemos numa incessante mobilidade do mundo, numa situação intimamente conflituosa e perguntamo-nos continuamente sobre como habitar este conflito. Esta tarefa, ligada à actividade especulativa do ser, cria um novo espaço filosófico que enfrenta a fragmentaridade humana. Entramos assim, num pensamento que se afirma, ele mesmo, um texto em aberto. O pensar o pensamento como um movimento infinito de reconfiguração do próprio corpo. A beleza passa a ser um conceito intemporal configurado através das experiências humanas e da sua subjectividade. Há uma transição das experiências humanas para além do instante em que ocorrem, é um movimento de representação por símbolos que traduzem sentido e a que damos o nome de Arte. Cada símbolo pressupõe uma representação e os símbolos estéticos, alem da função comunicativa, adquirem significações outras. Os símbolos estéticos têm como uma das principais funções fazer perdurar a experiência, são representações imutáveis da realidade. Não há uma predeterminação normativa na estética, é uma fonte que está intrinsecamente ligada ao desenrolar da experiência.
A estética é um tipo de conhecimento que bate à porta de todas as qualidades sensíveis dos humanos e que está relacionado com a capacidade inteligível do homem. O insondável abismo do que somos e o insondável abismo que o mundo é.
“Ninguém nos curará do fogo surdo, o fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de Hachette. Incuráveis, absolutamente incuráveis, escolhemos o Grande Parafuso como tura, inclinamo-nos sobre ele, entramos nele, voltamos a inventá-lo a cada dia que passa, a cada mancha de vinho na toalha, a cada beijo do mofo nas madrugadas da Cour de Rohan, inventamos o nosso incêndio, ardemos de dentro para fora, talvez seja essa a escolha, talvez as palavras envolvam essa escolha como guardanapos envolvem o pão e o sabor permaneça no interior, a farinha que se estica, o sim sem o não, o não sem o sim, o dia sem Manes, sem Ormuz ou Arimán, de uma vez por todas e em paz e chega.”
A estética vem legitimar o conhecimento sensível, os objectos transformam-se em sensações. Os sentidos, introduzem na mente várias percepções distintas das coisas, ideias subjectivas que não são as qualidades das próprias coisas, são ideias de percepção, de raciocinar, de pensar, de querer.
A estética, do ponto de vista filosófico, ao apontar-se como disciplina, procura salientar-se que ela participa de uma visão global do ser. Considera-se que a beleza, a arte e a experiência estética, são dimensões fundamentais de qualquer análise filosófica que verse a existência.
A nossa vida assemelha-se a uma viagem. Quando viajamos procuramos conhecer. Conhecer o rosto que é indefinido, de nós mesmos. Há uma diluição da nossa identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo conhecimento que desencadeia a viagem, é a curiosidade atormentada, um conhecimento que nos escapa continuamente, um saber amargo que se alcança, o horror de enfrentarmos a nossa imagem em diluição. Por mais que percorramos esta viagem vamos sempre notar a presença de uma ausência, a busca atormentada da nossa própria imagem, a reconfiguração de si, criar, ser, pensar, como viver na impossibilidade de definir definitivamente a configuração do sentido que indicia o humano?
Uma hemorragia de sentidos, pensados desde o interior, que se nos revelam sob a forma de obras de arte, onde nos revemos.



Bibliografia:

Cortázar, Júlio, O Jogo do Mundo, Lisboa, Cavalo de Ferro editores, 2008


Teresa Rolla

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