terça-feira, 3 de novembro de 2015

Nietzche, Zizek e a Ética

Em 1885 Friedrich Nietzsche deu ao mundo um novo conceito de homem, na sua obra “Assim falava Zaratustra” e chamou-lhes, a essa espécime ainda por vir, os últimos homens. Estes homens eram novos e ao mesmo tempo últimos, o que nos leva a uma bifurcação de sentido. Quando Nietzsche nos dá a explicação para que o homem reúna em si estes dois factores, somos assolados por uma sensação de impotência e de reverência perante o autor. Não nos podemos esquecer que mais de um século passou desde que Nietzsche inventou o conceito, estamos portanto sob uma luz nova para analisarmos este novo homem. O que Nietzsche não sabia e que nós sabemos é que a profecia se realizou e o mundo está, de facto, povoado de últimos homens. Nas palavras de Nietzsche, este tipo de homem assumiria a forma de uma criatura apática, sem grandes paixões nem lealdades, incapaz de sonhar e cansado da vida - alguém que não assume riscos e que se limita a procurar conforto e segurança detendo uma atitiude de tolerância mútua face ao mundo. Posto isto, é-nos impossível não ver como somos realmente os últimos homens profetizados por Nietzsche, e mesmo que tentemos negar que realmente tomamos o caminho descrito pelo filósofo, chegamos sempre a um ponto onde temos que reconhecer que os espelhos da abstração se viraram para nós, e em todos os eles, as palavras de Nietzsche fazem sentido. Não somos já capazes de ignorar o sentido que assumimos, ou melhor, a falta de sentido que protagonizamos. O tempo da denegação fetichista em que temos consciência de que sabemos, mas ao mesmo tempo não queremos saber o que sabemos e por isso optamos por não saber, está a chegar ao fim. Quando Zizek nos apresenta este gesto, a que atribui o nome de denegação fetichista, não está a falar senão dos últimos homens nietzschianos. Os homens do primeiro mundo, da actual classe média, que vivem sem consciência do que são e do que os rodeia, conhecem-se já dentro de um sistema que conduz sozinho todas as vidas que lhe são próximas, as regras estão já estipuladas sob a forma de costumes que mais não são do que meta-regras que nos dizem como aplicar as suas normas explícitas. E no entanto, seria um erro não perceber que o problema está directamente relacionado com estas ‘meta-regras’, não podemos ignorar que são exactamente elas que nos dizem o que não está ecsrito em lado nenhum, ou melhor, o que está escrito por baixo das leis escritas. O que se é-sendo, isto é, os costumes adquirem-se no uso diário de uma comunidade, são-ao-serem praticados, só a prática é que nos mostra os costumes, não podem ser lidos, só observados. E é numa luta de costumes que o mundo bifurca nos dias de hoje. Estamos em plena guerra de costumes que se traduz politicamente num choque de civilizações, que nas palavras de Walter Benjamin, se traduz num ‘choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes’.
Ora, ao tentarmos perceber como chegamos até aqui, temos que ter presente que vivemos debaixo do tecto do liberalismo, que se fundou na Europa, depois da guerra dos trinta anos, como reacção à imposição de coexistência entre pessoas com fundamentos religiosos distintos. Somos obrigados a perceber que o liberalismo nasceu da tolerância como resposta para acabar com um choque de fundamentos. A tolerância adquiriu aqui o seu ponto máximo como valor a ser respeitado, o mundo foi coberto por um céu tolerante que permitia a coexistência pacífica de olhares completamente diferentes sobre o mundo. As religiões já não podiam ser um problema de coexistência humana, era preferível ser tolerante para com os outros, diferentes de nós, do que fazer-lhes frente. Zizek mostra-nos o caminho que a visão liberal tomou, em termos filosóficos, ao demonstrar como o sujeito cartesiano fundou o liberalismo, ao afirmar: “A base filosófica desta ideologia do sujeito liberal universal é o sujeito cartesiano. (…) A experiência fundadora da posição da dúvida universal de Descartes é precisamente uma experiência ‘multicultural’ do facto de a nossa própria tradição não ser melhor do que nos parecem ser as tradições ‘excêntricas’ dos outros”. Para Kant, ao reflectirmos a partir das nossas raízes étnicas estavamos a cometer um erro grave, que se traduzia num procedimento de ‘uso privado da razão’, que se limitava a si próprio por pressupostos dogmáticos contingentes. Estas duas visões que iniciaram o liberalismo trouxeram-nos aos últimos homens formados pelo capitalismo. Embora tenhamos que assumir a importância que Kant e Descartes tiveram na nossa formação filosófica europeia, não podemos deixar de os importunar quando tratamos da questão do liberalismo, ou não tivessem sido eles a mostrar-nos o valor da tolerância para uma vida boa. O problema que advém daqui não diz respeito ao liberalismo em si, mas ao que ele criou. O triunfo da sociedade capitalista que nasceu das sementes que plantamos no solo do liberalismo é a consequência. O capitalismo por si só é um problema na medida em que não é um nome de uma civilização, é uma maneira de estar no mundo que se adapta a todas as formas de mundo. O capitalismo não tem nacionalidade, tanto é americano como asiático, não tem fronteiras no seu uso, abrange o mundo e por isso é que é global. A globalização advém daqui, do lugar que o capitalismo assumiu ao não ser de ninguém e ser de toda a gente.
Mas como viver num mundo onde o capitalismo assumiu o papel de rei quando vivemos através de pressupostos e perspectivas que não incluem a monarquia? É este o problema com que o século XXI se debate. Debaixo do céu do liberalismo os costumes são aquilo que nos distingue uns dos outros, mesmo quando vivemos em sociedades capitalistas onde reina a experiência de si próprio como ideologia. E isto é um problema na medida em que, a universalidade e a singularidade entram em combate interno dentro do eu. Somos liberalmente singulares e universalmente capitalistas. O paradoxo do século XXI desenha-se nesta frase no meu ponto de vista. Pela primeira vez, na história da humanidade o humano que habita o mundo não dispõe de uma ‘cartografia cognitiva dotada de sentido’, isto é, embora o capitalismo seja global mantém uma constelação ideológica ‘privada de sentido’ que se traduz nas palavras de Nietzsche ao descrever ‘os últimos homens’. Homens onde a apatia se instalou como marca da tolerância pelo outro, e mesmo sabendo à partida que esse outro é como um intruso para nós, é um abismo de sentido, preferimos tolera-lo do que reivindicarmos as nossas cnceções mais singulares. Só há uma de duas explicações para este facto nas palavras de Zizek: “ou tratamos o outros com condescendência e evitamos feri-lo a fim de não arruinarmos as suas ilusões ou adoptamos a atitude relativista dos múltiplos ‘regimes de verdade”.
É aqui que podemos colocar a pergunta que, no meu ponto de vista caracteriza o pensamento filosófico de Zizek quanto a esta questão: “Até onde deverá ir a tolerância pela intolerância?” – quando tentamos responder a esta pergunta somos obrigados a perceber que a nossa atitude de tolerância não é universal, é mais um dos costumes intrínsecos ao pensamento liberal europeu que se desseminou pela ocidentalidade mas que, ao mesmo tempo, deixou de fora todas as sociedades não liberais. A tolerância não é global, não é tida como valor por todos os povos nem por todas as sociedades, então porquê continuar a insistir numa atitude tolerante quando já assistimos ao terror que ela pode suscitar? É aqui que, para mim, Zizek mostra todo um novo modo de pensar relativamente a este problema. A tolerância esgotou as suas armas, esgotou a sua forma de lutar e despoletou a intolerância dos não liberais. O problema com que a Europa joga neste momento é definitivamente o problema de “ter sido a primeira e única civilização em cujo seio o ateísmo é uma opção plenamente legítima”. Como fazer sociedades religiosas fundamentalistas aceitar este facto? E como lidar com os seus fundamentalismos quando eles se apresentam sob a forma de completo massacre da dignidade individual de cada um? A tolerância não pode continuar a constituir uma resposta válida a este mecanismo de denegação fetichista. Zizek assume como ponto de partida que a tolerância está minada de limitações, na sua qualidade de concepção privilegiada subjacente à actual ideologia. O autor afirma logo no início do livro que: “Opor-se a todas as formas de violência, da violência física, directa, à violência ideológica, parece ser a preocupação maior da atitude liberal tolerante que hoje prevalece.” Esta perspectiva deixa-nos clara a constactação de que optamos por nos alienarmos do verdadeiro problema em vez de o combatermos. A nossa atitude passa por uma abstracção em relação à verdadeira causa do problema para conseguirmos continuar a viver do lado liberal do mundo.
O ponto da tese de Zizek que neste contexto vem ao de cima é a situação de violência sistémica em que vivemos e da qual não temos consciência. O facto de a violência não poder ser atribuída a indivíduos concretos e às suas más intenções é uma violência muito mais inquietante do que qualquer forma de violência social e ideológica pré-capitalista. A violência gerada através do motor capitalista é uma violência anónima onde a realidade não conta, o que conta é a situação do capital em dado momento num determinado sentido. Vivemos através de especulações capitalistas que ditam a sorte a camadas inteiras de população e que é indiferente a esse facto no seu íntimo. Esta é a cara da violência escondida do século XXI. Não apregoamos nenhuns cartazes com nenhum novo programa que torne os países sudesenvolvidos mais próximos do desenvolvimento que nós experênciamos, pelo contrário, somos os socorristas hipócritas dos países subdesenvolvidos. Concedemos auxílio e evitamos a questão fundamental, a nossa co-responsabilidade  e cumplicidade face à situação dos países subdesenvolvidos. A violência sistémica passa-se nesta dialética de capital, onde nos desculpamos com a solidariedade face à nossa existência no primeiro mundo. Nas palavras de Zizek “a beneficiência é a máscara humanitária que dessimula o rosto da exploração económica”, o que nos mostra sem romantismo, a nossa hipócrisia nos milhões que doamos às causas humanitárias, que constantemente criamos ou das quais somos diariamente alvo. Há uma violência instrínseca ao facto de ser necessário apregoar a beneficiência como uma roldana que faz o ciclo de reprodução social capitalista continuar o seu caminho. E aqui o mundo global divide-se num abismo de simbolizações inerentes às meta-regras de que são feitos os costumes. É neste ponto que o mundo se torna global e ao mesmo tempo se separa. Os necessitados de ajuda e os que necessitam de ajudar tornam-se as duas faces da mesma moeda a que chamamos globalização. Um factor decisivo do modo capitalista ter prosperado no ocidente é o facto de a cultura ocidental colocar a autonomia e a liberdade acima da solidariedade colectiva. Só neste pano de fundo liberal, onde a experiência do eu adquire a forma de ideologia, é que a abstracção quanto ao verdadeiro movimento capitalista poderia tornar-se realidade. Estamos completamente abstraídos da exploração económica de que somos agentes. É por isso que a violência não é entre ideologias nem partidos políticos, hoje a violência joga-se noutro campo, entre a singularidade de cada um e a universalidade que o mundo apregoa. As diferenças culturais tomaram o lugar das antigas guerras partidárias. Quando o liberalismo afirma que Deus morreu e o Islão decreta uma guerra em nome de Deus o mundo torna-se palco de um conflito de egos, entre o fundamentalista e o liberalista. Já somos todos capitalistas em termos económicos, mas o capitalismo, como já disse, funda-se no liberalismo, e só uma sociedade onde o liberalismo promoveu a tolerância durante tanto tempo, como a sociedade ocidental, é que consegue moldar-se ao modelo capitalista. Todas as outras sociedades, que se apanharam na rede capitalista sem terem tido noções liberalistas implantadas no seu seio, petrificam de medo perante uma globalização de crentes e não-crentes que se toleram. E aqui voltamos ao factor da violência que gerou o nome do livro de Zizek e à frase de Benjamin onde este afirma que “todo o choque de civilizações é o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”, pois a situação actual do mundo não passa do choque entre a barbárie capitalista e a barbárie religiosa fundamentalista. É preciso notar que a base de todas estas barbáries se situa numa qualquer fórmula de violência. Por outro lado, o facto da ocidentalidade se opor a toda e qualquer forma de violência é um factor que decreta em si um engodo. Ao deixarmo-nos levar por um pensamento que elegeu a tolerância como valor máximo estamos a deixar-nos consumir pelo espírito enganador que move o mundo capitalista.
A tolerância já provou que não resolve o problema que lhe subjaz. Então, que mais há a fazer senão levantar o véu que cobre o verdadeiro problema e dar de caras com o medo como constituinte fundamental da nossa realidade? Temos medo do outro, temos medo de perder o nosso lugar no mundo, temos medo de deixar de controlar esse mundo, temos medo que o mundo se vire contra nós e nos condene à morte, temos medo que o medo nos assole por completo, temos medo que um colapso aconteça e leve consigo tudo o que somos, no fundo, chegamos a ter medo de ter medo. “A desintegração das barreiras simbólicas protectoras que mantinham o outro a uma distância adequada”, é, para Zizek, um dos factores que decretam o medo como sintoma das actuais sociedades. O medo de ser assediado é constitutivo da nossa sociedade liberal capitalista, é o novo medo. O medo do Outro enquanto pleno portador de subjectividade, de querer, de desejo. O outro no papel de portador daquilo que nós queremos. Zizek apresentou o melhor exemplo deste comportamento nas palavras de Lacan quando este enuncia que o problema do desejo humano é ser sempre ‘desejo do outro’ em todos os sentidos do termo: desejo pelo outro, desejo de ser desejado pelo outro, e, especialmente, desejo daquilo que o outro deseja. Há uma clara alusão a Freud neste capítulo do desejo, no que consta à injunção freudiana do gozo imposta pelo supereu. É inerente à condição humana sermos portadores de desejos. O que difere uma boa conduta de uma má neste capítulo, é a consciência de limitação que se deve impôr a si mesmo com vista a não ser levado pelos desejos que roçam a inveja como motor principal. O gozo de um desejo difere mediante o motor que nos leva a degusta-lo, quando desejamos só por desejar deixamos de tirar partido da degustação. É preciso toda uma racionalização dos desejos ao modo kantiano, como premissa universal dos direitos humanos para se conseguir dar a volta a esta questão. Nas palavras de Zizek: “A rivalidade entre os seres humanos só pode ser superada quando cada indivíduo limita os seus próprios desejos”. Não deixa de fazer sentido que este problema renasça no seio de uma sociedade liberal onde a economia é o motor, e onde a ciência é a religião. Quanto a este último ponto, é facilmente perceptível que a ciência adquiriu um estatuto de religião nos dias de hoje. Somos facilmente manipulados pelo pressuposto de que a ciência nos cura dos males que povoam o mundo em forma de bactérias e micróbios, assim como através da ciência a tecnologia nos fornece uma forma cómoda de estar no mundo. Posto isto, não nos é possível negar que adquirimos um novo modo de estar no mundo, preconizado pela fé na ciência, com traços relativamente diferentes de uma fé religiosa, mas que serve de depósito às esperanças humanas de segurança e bem estar. O último recurso de toda a violência especificamente humana é, nas palavras do autor de “Violência”, a linguagem. É através da linguagem que chegamos ao primeiro estádio da violência. A linguagem, ao permitir-nos ter um mundo conceptualizado por símbolos, atribui-nos modos de estar nesse mesmo mundo, completamente diferentes. A linguagem é o primeiro factor de divisão entre os homens, é através da linguagem que “podemos viver em mundos diferentes ainda que moremos na mesma rua”. Zizek atribui à linguagem um poder fundamental na medida em que torna claro que é através dela que nos relacionamos com o Outro e é também através dela que o Outro se torna um abismo para nós. Estamos mais uma vez face a um paradoxo da condição humana que não tem em vista uma resolução fácil nem prevista. Está inerentemente ligado a nós, humanos a nossa condição de ser-no-mundo. Resta-nos então perceber que não basta estar, ou que por si só existir é estar, pelo contrário, existir na sociedade actual é não estar presente, é ser ausente, despojado de vida, alguém que se limita a assistir a uma peça de teatro num camarote qualquer do mundo. Precisamos de voltar a perceber que viver implica conhecer aquilo que está por detrás dos nossos pressupostos tidos como certos. Em última análise, precisamos de voltar a elogiar “o discurso do método” cartesiano para voltarmos a saber pensar.

Não será de todo por acaso que Zizek acaba o epílogo de “Violência” com uma frase que eu não consigo deixar de citar: “Por vezes, não fazer nada  é a coisa mais violenta que temos a fazer”. E, perante isto, só há uma coisa a fazer pela nossa actual situação: “derrubarmos o verdadeiro mundo social e económico e transformar as sociedades de maneira a que as pessoas deixem de tentar desesperadamente fugir do seu próprio mundo”.


                                                                             Teresa Rolla

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