Em
1885 Friedrich Nietzsche deu ao mundo um novo conceito de homem, na sua obra
“Assim falava Zaratustra” e chamou-lhes, a essa espécime ainda por vir, os
últimos homens. Estes homens eram novos e ao mesmo tempo últimos, o que nos
leva a uma bifurcação de sentido. Quando Nietzsche nos dá a explicação para que
o homem reúna em si estes dois factores, somos assolados por uma sensação de
impotência e de reverência perante o autor. Não nos podemos esquecer que mais
de um século passou desde que Nietzsche inventou o conceito, estamos portanto
sob uma luz nova para analisarmos este novo homem. O que Nietzsche não sabia e
que nós sabemos é que a profecia se realizou e o mundo está, de facto, povoado
de últimos homens. Nas palavras de Nietzsche, este tipo de homem assumiria a
forma de uma criatura apática, sem grandes paixões nem lealdades, incapaz de
sonhar e cansado da vida - alguém que não assume riscos e que se limita a
procurar conforto e segurança detendo uma atitiude de tolerância mútua face ao
mundo. Posto isto, é-nos impossível não ver como somos realmente os últimos
homens profetizados por Nietzsche, e mesmo que tentemos negar que realmente
tomamos o caminho descrito pelo filósofo, chegamos sempre a um ponto onde temos
que reconhecer que os espelhos da abstração se viraram para nós, e em todos os
eles, as palavras de Nietzsche fazem sentido. Não somos já capazes de ignorar o
sentido que assumimos, ou melhor, a falta de sentido que protagonizamos. O
tempo da denegação fetichista em que temos consciência de que sabemos, mas ao
mesmo tempo não queremos saber o que sabemos e por isso optamos por não saber,
está a chegar ao fim. Quando Zizek nos apresenta este gesto, a que atribui o
nome de denegação fetichista, não está a falar senão dos últimos homens
nietzschianos. Os homens do primeiro mundo, da actual classe média, que vivem
sem consciência do que são e do que os rodeia, conhecem-se já dentro de um
sistema que conduz sozinho todas as vidas que lhe são próximas, as regras estão
já estipuladas sob a forma de costumes que mais não são do que meta-regras que
nos dizem como aplicar as suas normas explícitas. E no entanto, seria um erro
não perceber que o problema está directamente relacionado com estas
‘meta-regras’, não podemos ignorar que são exactamente elas que nos dizem o que
não está ecsrito em lado nenhum, ou melhor, o que está escrito por baixo das
leis escritas. O que se é-sendo, isto é, os costumes adquirem-se no uso diário
de uma comunidade, são-ao-serem praticados, só a prática é que nos mostra os
costumes, não podem ser lidos, só observados. E é numa luta de costumes que o
mundo bifurca nos dias de hoje. Estamos em plena guerra de costumes que se
traduz politicamente num choque de civilizações, que nas palavras de Walter
Benjamin, se traduz num ‘choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes’.
Ora,
ao tentarmos perceber como chegamos até aqui, temos que ter presente que
vivemos debaixo do tecto do liberalismo, que se fundou na Europa, depois da
guerra dos trinta anos, como reacção à imposição de coexistência entre pessoas
com fundamentos religiosos distintos. Somos obrigados a perceber que o
liberalismo nasceu da tolerância como resposta para acabar com um choque de
fundamentos. A tolerância adquiriu aqui o seu ponto máximo como valor a ser
respeitado, o mundo foi coberto por um céu tolerante que permitia a
coexistência pacífica de olhares completamente diferentes sobre o mundo. As
religiões já não podiam ser um problema de coexistência humana, era preferível
ser tolerante para com os outros, diferentes de nós, do que fazer-lhes frente.
Zizek mostra-nos o caminho que a visão liberal tomou, em termos filosóficos, ao
demonstrar como o sujeito cartesiano fundou o liberalismo, ao afirmar: “A base
filosófica desta ideologia do sujeito liberal universal é o sujeito cartesiano.
(…) A experiência fundadora da posição da dúvida universal de Descartes é precisamente
uma experiência ‘multicultural’ do facto de a nossa própria tradição não ser
melhor do que nos parecem ser as tradições ‘excêntricas’ dos outros”. Para
Kant, ao reflectirmos a partir das nossas raízes étnicas estavamos a cometer um
erro grave, que se traduzia num procedimento de ‘uso privado da razão’, que se
limitava a si próprio por pressupostos dogmáticos contingentes. Estas duas
visões que iniciaram o liberalismo trouxeram-nos aos últimos homens formados
pelo capitalismo. Embora tenhamos que assumir a importância que Kant e
Descartes tiveram na nossa formação filosófica europeia, não podemos deixar de
os importunar quando tratamos da questão do liberalismo, ou não tivessem sido
eles a mostrar-nos o valor da tolerância para uma vida boa. O problema que
advém daqui não diz respeito ao liberalismo em si, mas ao que ele criou. O
triunfo da sociedade capitalista que nasceu das sementes que plantamos no solo
do liberalismo é a consequência. O capitalismo por si só é um problema na
medida em que não é um nome de uma civilização, é uma maneira de estar no mundo
que se adapta a todas as formas de mundo. O capitalismo não tem nacionalidade,
tanto é americano como asiático, não tem fronteiras no seu uso, abrange o mundo
e por isso é que é global. A globalização advém daqui, do lugar que o
capitalismo assumiu ao não ser de ninguém e ser de toda a gente.
Mas
como viver num mundo onde o capitalismo assumiu o papel de rei quando vivemos
através de pressupostos e perspectivas que não incluem a monarquia? É este o
problema com que o século XXI se debate. Debaixo do céu do liberalismo os
costumes são aquilo que nos distingue uns dos outros, mesmo quando vivemos em
sociedades capitalistas onde reina a experiência de si próprio como ideologia.
E isto é um problema na medida em que, a universalidade e a singularidade
entram em combate interno dentro do eu. Somos liberalmente singulares e
universalmente capitalistas. O paradoxo do século XXI desenha-se nesta frase no
meu ponto de vista. Pela primeira vez, na história da humanidade o humano que
habita o mundo não dispõe de uma ‘cartografia cognitiva dotada de sentido’,
isto é, embora o capitalismo seja global mantém uma constelação ideológica
‘privada de sentido’ que se traduz nas palavras de Nietzsche ao descrever ‘os
últimos homens’. Homens onde a apatia se instalou como marca da tolerância pelo
outro, e mesmo sabendo à partida que esse outro é como um intruso para nós, é
um abismo de sentido, preferimos tolera-lo do que reivindicarmos as nossas cnceções
mais singulares. Só há uma de duas explicações para este facto nas palavras de
Zizek: “ou tratamos o outros com condescendência e evitamos feri-lo a fim de
não arruinarmos as suas ilusões ou adoptamos a atitude relativista dos
múltiplos ‘regimes de verdade”.
É aqui
que podemos colocar a pergunta que, no meu ponto de vista caracteriza o
pensamento filosófico de Zizek quanto a esta questão: “Até onde deverá ir a
tolerância pela intolerância?” – quando tentamos responder a esta pergunta
somos obrigados a perceber que a nossa atitude de tolerância não é universal, é
mais um dos costumes intrínsecos ao pensamento liberal europeu que se
desseminou pela ocidentalidade mas que, ao mesmo tempo, deixou de fora todas as
sociedades não liberais. A tolerância não é global, não é tida como valor por
todos os povos nem por todas as sociedades, então porquê continuar a insistir
numa atitude tolerante quando já assistimos ao terror que ela pode suscitar? É
aqui que, para mim, Zizek mostra todo um novo modo de pensar relativamente a
este problema. A tolerância esgotou as suas armas, esgotou a sua forma de lutar
e despoletou a intolerância dos não liberais. O problema com que a Europa joga
neste momento é definitivamente o problema de “ter sido a primeira e única
civilização em cujo seio o ateísmo é uma opção plenamente legítima”. Como fazer
sociedades religiosas fundamentalistas aceitar este facto? E como lidar com os
seus fundamentalismos quando eles se apresentam sob a forma de completo
massacre da dignidade individual de cada um? A tolerância não pode continuar a
constituir uma resposta válida a este mecanismo de denegação fetichista. Zizek
assume como ponto de partida que a tolerância está minada de limitações, na sua
qualidade de concepção privilegiada subjacente à actual ideologia. O autor
afirma logo no início do livro que: “Opor-se a todas as formas de violência, da
violência física, directa, à violência ideológica, parece ser a preocupação
maior da atitude liberal tolerante que hoje prevalece.” Esta perspectiva
deixa-nos clara a constactação de que optamos por nos alienarmos do verdadeiro
problema em vez de o combatermos. A nossa atitude passa por uma abstracção em
relação à verdadeira causa do problema para conseguirmos continuar a viver do
lado liberal do mundo.
O
ponto da tese de Zizek que neste contexto vem ao de cima é a situação de
violência sistémica em que vivemos e da qual não temos consciência. O facto de
a violência não poder ser atribuída a indivíduos concretos e às suas más
intenções é uma violência muito mais inquietante do que qualquer forma de
violência social e ideológica pré-capitalista. A violência gerada através do
motor capitalista é uma violência anónima onde a realidade não conta, o que
conta é a situação do capital em dado momento num determinado sentido. Vivemos
através de especulações capitalistas que ditam a sorte a camadas inteiras de
população e que é indiferente a esse facto no seu íntimo. Esta é a cara da
violência escondida do século XXI. Não apregoamos nenhuns cartazes com nenhum
novo programa que torne os países sudesenvolvidos mais próximos do
desenvolvimento que nós experênciamos, pelo contrário, somos os socorristas
hipócritas dos países subdesenvolvidos. Concedemos auxílio e evitamos a questão
fundamental, a nossa co-responsabilidade
e cumplicidade face à situação dos países subdesenvolvidos. A violência
sistémica passa-se nesta dialética de capital, onde nos desculpamos com a
solidariedade face à nossa existência no primeiro mundo. Nas palavras de Zizek
“a beneficiência é a máscara humanitária que dessimula o rosto da exploração
económica”, o que nos mostra sem romantismo, a nossa hipócrisia nos milhões que
doamos às causas humanitárias, que constantemente criamos ou das quais somos
diariamente alvo. Há uma violência instrínseca ao facto de ser necessário
apregoar a beneficiência como uma roldana que faz o ciclo de reprodução social
capitalista continuar o seu caminho. E aqui o mundo global divide-se num abismo
de simbolizações inerentes às meta-regras de que são feitos os costumes. É
neste ponto que o mundo se torna global e ao mesmo tempo se separa. Os
necessitados de ajuda e os que necessitam de ajudar tornam-se as duas faces da
mesma moeda a que chamamos globalização. Um factor decisivo do modo capitalista
ter prosperado no ocidente é o facto de a cultura ocidental colocar a autonomia
e a liberdade acima da solidariedade colectiva. Só neste pano de fundo liberal,
onde a experiência do eu adquire a forma de ideologia, é que a abstracção
quanto ao verdadeiro movimento capitalista poderia tornar-se realidade. Estamos
completamente abstraídos da exploração económica de que somos agentes. É por isso
que a violência não é entre ideologias nem partidos políticos, hoje a violência
joga-se noutro campo, entre a singularidade de cada um e a universalidade que o
mundo apregoa. As diferenças culturais tomaram o lugar das antigas guerras
partidárias. Quando o liberalismo afirma que Deus morreu e o Islão decreta uma
guerra em nome de Deus o mundo torna-se palco de um conflito de egos, entre o
fundamentalista e o liberalista. Já somos todos capitalistas em termos
económicos, mas o capitalismo, como já disse, funda-se no liberalismo, e só uma
sociedade onde o liberalismo promoveu a tolerância durante tanto tempo, como a
sociedade ocidental, é que consegue moldar-se ao modelo capitalista. Todas as
outras sociedades, que se apanharam na rede capitalista sem terem tido noções
liberalistas implantadas no seu seio, petrificam de medo perante uma
globalização de crentes e não-crentes que se toleram. E aqui voltamos ao factor
da violência que gerou o nome do livro de Zizek e à frase de Benjamin onde este
afirma que “todo o choque de civilizações é o choque entre as barbáries que
lhes estão subjacentes”, pois a situação actual do mundo não passa do choque
entre a barbárie capitalista e a barbárie religiosa fundamentalista. É preciso
notar que a base de todas estas barbáries se situa numa qualquer fórmula de
violência. Por outro lado, o facto da ocidentalidade se opor a toda e qualquer
forma de violência é um factor que decreta em si um engodo. Ao deixarmo-nos
levar por um pensamento que elegeu a tolerância como valor máximo estamos a
deixar-nos consumir pelo espírito enganador que move o mundo capitalista.
A
tolerância já provou que não resolve o problema que lhe subjaz. Então, que mais
há a fazer senão levantar o véu que cobre o verdadeiro problema e dar de caras
com o medo como constituinte fundamental da nossa realidade? Temos medo do
outro, temos medo de perder o nosso lugar no mundo, temos medo de deixar de
controlar esse mundo, temos medo que o mundo se vire contra nós e nos condene à
morte, temos medo que o medo nos assole por completo, temos medo que um colapso
aconteça e leve consigo tudo o que somos, no fundo, chegamos a ter medo de ter
medo. “A desintegração das barreiras simbólicas protectoras que mantinham o
outro a uma distância adequada”, é, para Zizek, um dos factores que decretam o
medo como sintoma das actuais sociedades. O medo de ser assediado é constitutivo
da nossa sociedade liberal capitalista, é o novo medo. O medo do Outro enquanto
pleno portador de subjectividade, de querer, de desejo. O outro no papel de
portador daquilo que nós queremos. Zizek apresentou o melhor exemplo deste
comportamento nas palavras de Lacan quando este enuncia que o problema do
desejo humano é ser sempre ‘desejo do outro’ em todos os sentidos do termo:
desejo pelo outro, desejo de ser desejado pelo outro, e, especialmente, desejo
daquilo que o outro deseja. Há uma clara alusão a Freud neste capítulo do
desejo, no que consta à injunção freudiana do gozo imposta pelo supereu. É
inerente à condição humana sermos portadores de desejos. O que difere uma boa
conduta de uma má neste capítulo, é a consciência de limitação que se deve
impôr a si mesmo com vista a não ser levado pelos desejos que roçam a inveja
como motor principal. O gozo de um desejo difere mediante o motor que nos leva
a degusta-lo, quando desejamos só por desejar deixamos de tirar partido da
degustação. É preciso toda uma racionalização dos desejos ao modo kantiano,
como premissa universal dos direitos humanos para se conseguir dar a volta a
esta questão. Nas palavras de Zizek: “A rivalidade entre os seres humanos só
pode ser superada quando cada indivíduo limita os seus próprios desejos”. Não
deixa de fazer sentido que este problema renasça no seio de uma sociedade
liberal onde a economia é o motor, e onde a ciência é a religião. Quanto a este
último ponto, é facilmente perceptível que a ciência adquiriu um estatuto de
religião nos dias de hoje. Somos facilmente manipulados pelo pressuposto de que
a ciência nos cura dos males que povoam o mundo em forma de bactérias e micróbios,
assim como através da ciência a tecnologia nos fornece uma forma cómoda de
estar no mundo. Posto isto, não nos é possível negar que adquirimos um novo
modo de estar no mundo, preconizado pela fé na ciência, com traços
relativamente diferentes de uma fé religiosa, mas que serve de depósito às
esperanças humanas de segurança e bem estar. O último recurso de toda a
violência especificamente humana é, nas palavras do autor de “Violência”, a
linguagem. É através da linguagem que chegamos ao primeiro estádio da
violência. A linguagem, ao permitir-nos ter um mundo conceptualizado por
símbolos, atribui-nos modos de estar nesse mesmo mundo, completamente
diferentes. A linguagem é o primeiro factor de divisão entre os homens, é
através da linguagem que “podemos viver em mundos diferentes ainda que moremos
na mesma rua”. Zizek atribui à linguagem um poder fundamental na medida em que
torna claro que é através dela que nos relacionamos com o Outro e é também
através dela que o Outro se torna um abismo para nós. Estamos mais uma vez face
a um paradoxo da condição humana que não tem em vista uma resolução fácil nem
prevista. Está inerentemente ligado a nós, humanos a nossa condição de
ser-no-mundo. Resta-nos então perceber que não basta estar, ou que por si só existir
é estar, pelo contrário, existir na sociedade actual é não estar presente, é
ser ausente, despojado de vida, alguém que se limita a assistir a uma peça de
teatro num camarote qualquer do mundo. Precisamos de voltar a perceber que
viver implica conhecer aquilo que está por detrás dos nossos pressupostos tidos
como certos. Em última análise, precisamos de voltar a elogiar “o discurso do
método” cartesiano para voltarmos a saber pensar.
Não
será de todo por acaso que Zizek acaba o epílogo de “Violência” com uma frase
que eu não consigo deixar de citar: “Por vezes, não fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fazer”.
E, perante isto, só há uma coisa a fazer pela nossa actual situação:
“derrubarmos o verdadeiro mundo social e económico e transformar as sociedades
de maneira a que as pessoas deixem de tentar desesperadamente fugir do seu
próprio mundo”.
Teresa Rolla
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