domingo, 22 de abril de 2012

Vírgulas e pontos finais

-->
É nessa sede de querer sempre mais que eu me reconheço, nesse teu traço firme quando a caneta desliza pelo papel. Como se entre as palavras não houvesse espaços, como se entre nós não estivesse um abismo criado desde o início. E é sempre nas palavras que não escreves que eu me reconheço, na tinta preta de caracteres que não estão lá. Que ficaram por dizer e que por isso, dizem tanto. Nunca podemos dizer tudo. É uma característica da linguagem, ela tem falhas como todos nós. Nunca nos deixa dizer tudo. Nunca há palavras suficientes, e é para isso que existem as entrelinhas. Os espaços em branco. Os silêncios. São tudo intervalos necessários em qualquer língua, em qualquer papel. Entre tu e eu, entre eu e o mundo, as palavras perdem-se no abismo e fica o silêncio para lembra-las e soletra-las, como se tivesses escondido um segredo em cada letra e cada frase se desmoronasse na ponta da tua língua. Porque são tudo palavras, o que trocamos, entre eu e tu. Não passamos de vírgulas e pontos finais. Somos só as ideias entre eles. O mesmo fôlego, em maiúsculas ou minúsculas, tanto faz. 

TR

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O umbigo tomou o lugar do cérebro

-->
Como viver numa realidade onde tudo se descredibilizou e onde o mundo se transfigurou em mundinhos que se fizeram nichos, onde pessoas se comem umas às outras como refeições diárias de auto-estima pervertida; É estranho como os conceitos estão vazios, as interpretações adulteradas, os sentimentos fora do prazo e, no entanto, o mundo continua a acontecer, diariamente. Todos os dias como se nada fosse. Como se viver fosse isto. Criam-se relações em segundos, que são destruídas ainda mais rápido. Nada do que vale hoje tem significado amanhã. O ontem apaga-se com uma borracha, ou com a tecla delete. As palavras deixaram de ter valor, deixaram de se escrever a tentar construir o que quer que fosse, hoje são simples ‘máximas’ que se aplicam a tudo, desde que tenham menos que trinta palavras. A verdade caiu em descrédito e a mentira tornou-se necessária. Já ninguém se aguenta sem mentir a si próprio. Precisamos de mentir a nós mesmos para aguentar o mundo. E precisamos de acreditar nessas mentiras para conseguir viver. O caos instalou-se mas ninguém parece reparar. Chego a achar que as pessoas deixaram de pensar, mas , pelo contrário, cada vez se ouvem mais pensamentos saídos das mais variadas vozes. Toda a gente tem razão num mundo que perdeu a razão. É mais uma reviravolta copernicana na história do mundo. A razão esvaziou-se de verdade. Só serve para cultivar interesses individuais, de contexto e programáveis. A autenticidade perdeu-se a imitar-se a si própria. O pensamento morreu quando deixou de pensar para passar a imitar. E será que ninguém repara? Será que é assim tão complicado olhar em volta de vez em quando e ver para além do próprio reflexo? Há todo um mundo atrás de um nome, toda uma realidade individual que nos cerca. Mas, para além do eu, há um universo cheio de nomes, de identidades, de corpos, que pensam, que têm a própria objectiva e que tiram tantas fotografias como nós. Fotografias centradas em si. Onde as outras perspectivas são meras decorações de outras vidas que não têm interesse. Já nada prevalece. Apenas o eu ganha cada vez mais tamanho, cada vez mais espaço, cada vez mais tempo. Até que chega a hora do sufoco. Momentos, não passam de momentos. Onde o mundo desaba e ninguém sabe o que fazer consigo próprio, para onde ir. Qual é o caminho? Não há caminho. Só resta continuar em frente, erguer a cabeça e voltar a recolher auto-estima no eu que fotografa e se sente fotografado. Achar que é normal. Negligenciar a evidência de que algo está mal. E o problema é que pode não ser o mundo a dar a resposta. Pode não chegar por email. Talvez só se se começar a pensar e se sair da própria perspectiva. Perceber que o mundo já tem um sol, que brilha para todos. E que os holofotes são falsos. Talvez não passe tudo de um sonho e afinal nem existimos. Talvez isto seja só um parque de diversões, onde já não há que pensar, apenas experienciar cada vez mais, cada vez mais alto, cada vez mais forte. Recordar cada vez menos. Reflectir nunca. A necessidade de pensar perdeu-se quando o umbigo tomou o lugar do cérebro.

TR

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Um mundo no outro

-->
'Amo-te tanto.' - disse ela.
Palavras. Conjugadas. Quantas vezes numa vida se escrevem estas palavras? Quantas vezes, numa vida, se sente verdadeiramente vontade de juntar estas palavras ou de as escrever, uma a seguir à outra. Sempre achei que eram como um imperativo, um peso muito acima do suportável, um palco onde eu não imaginava querer estar. Eram palavras supérfulas num dicionário atolado de coisas importantes. Palavras, simples palavras incojugáveis por pertencerem ao núcleo das palavras-medo, das palavras-não-pensadas-fora-do-cinema. Como eu estava enganada do alto do meu crepúsculo de saberes indizíveis. Afinal elas dizem-se. Algumas vezes numa vida. Eles pronunciam-se por bocas, muitas bocas. Eles ganham vida e são escritas em papéis. Também são escritas em ecrãs. São lidas. Caracteres. Interpretados e reinterpretados. Olhados, revisitados. Ouvidos por mil vozes, em mil línguas. Destorcidos e claros como letras desenhadas num papel. São pronunciadas por vozes que pertencem a corpos. Somos corpos que vibram numa junção de caracteres. Sentidos. Há palavras e palavras, e há as palavras-medo assim como as palavras-sentidos. Palavras escondidas por baixo das palavras banais, escondidas da luz do dia, dos olhares do mundo. Palavras-silêncio, escondidas do barulho ensurdecedor da vida. Palavras símbolo, descodificadas. Palavras-vida que fazem arriscar tudo. Universos entrelaçados por vogais. Mundos edificados em caracteres. Não passam de palavras, mas são palavras-tudo. Palavras, uma a seguir à outra. Um mundo no outro.


TR