terça-feira, 3 de novembro de 2015

A Filosofia como uma das Belas Artes

Recensão crítica da obra de Daniel Innerarity, A Filosofia como uma das Belas Artes;




A filosofia é o ambiente musical do suspense. Filosofia como algo emocionente? Pois sim, sujeita também, então, à decepção. A filosofia é fundamentalmente uma expectativa; a ela confia-se-lhe muito, às vezes mais do que ela pode.
(Innerarity, 1995, p.9)

A Filosofia

            A filosofia pode ser apresentada de diversas maneiras, pode vestir-se de temas, de teorias, de doutrinas e de simples ideias, pode assumir diversas personalidades e expectativas, pode até disfarçar-se. A filosofia é, então, o espaço necessário ao pensamento, onde este se constrói, é a arena das ideias, onde estas se apresentam e se discutem, é o campo lavrado ou por lavrar ainda, onde a atenção é a semente. Simplificando, a filosofia é a construção do pensamento próprio.
Podemos dizer que a filosofia é uma casa onde todos podem entrar, onde a porta está sempre aberta e não há excluídos, onde cada um descobre o seu próprio recanto insubstituível. Não há uma maneira específica que decrete o que é a filosofia, há muitas maneiras. Posto isto, cabe-nos escolher o caminho a seguir, a pulsão mais forte que nos guia e nos icentiva a continuar, cabe a cada um de nós escolher que leis regem o seu próprio mundo dentro do mundo de todos. Mas, é imprescindivel notar que estes serão só aqueles que se comprometerem com a atitude crítica que é a filosofia, aqueles que se comprometerem consigo próprios na busca do sentido, que se comprometerem com a procura incessante de respostas, que acalentam o espírito, quando as perguntas são maiores do que nós.
A filosofia não é nada se não fizermos algo com ela, se não lhe tocarmos, se não remexermos no seu íntimo com as próprias mãos. É essa a parte criativa e artística que a filosofia despoleta, o convite à participação, à criação. A filosofia abre horizontes, potencia a criatividade, obriga à reflexão. A filosofia é, simplificando, pôr em prática a célebre frase de Sócrates: conhece-te a ti mesmo. É uma orientação criada a partir de nós próprios, onde nos assumimos como humanos em todas as suas paricularidades, anseios e interrogações, onde nos despimos das ilusões com que mentimos a nós próprios, com que nos fomos construindo e iludindo na pressa de chegar a tempo. Mas afinal que tempo é este? Que meta é esta? A filosofia como uma das belas artes é exactamente a resposta a estas duas perguntas, é a orientação de um modo de pensar que contempla a filosofia como uma arte de estar-no-mundo.
Antes de mais, é preciso ter em conta que a filosofia é feita por homens, os filósofos são homens reais que existiram e que, nessa existência, pensaram aquilo que hoje conhecemos deles. A filosofia depende da vida humana e o filosofar é, acima de tudo, uma radicação existencial humana. É a vida, em toda a sua complexidade, que proporciona o filosofar. É porque somos humanos, com todas as características intrínsecas a essa condição, que encontramos a filosofia. Deparamos com ela no mais íntimo do que somos, nos subterrâneos das nossas ideias e pensamentos. É certo que há pessoas com uma maior tendência para problematizar a existência, por necessidade ou por ociosidade. Mas, do meu ponto de vista, é ainda possível que todas as pessoas, sem excepção, tenham perguntado, am alguma altura, perante a própria vida: qual é o sentido disto? Clarificar esta resposta é abrir a porta à filosofia. É procurar o que outros disseram acerca do mesmo, é perceber a nossa posição face a isso, é questionar, indagar, desejar, escolher.
Um carácter filosófico não se adquire de uma vez, vai-se construindo, devagar, porque só devagar é que se consegue pensar claramente, fazer conjecturas, tomar anotações, deliberar, produzir. Nenhuma destas coisas se consegue fazer bem sem o tempo necessário. O tempo, além de ser um problema filosófico (que não analisarei aqui), é ainda o detentor da possibilidade filosófica. A filosofia faz-se no tempo e muitas vezes, em consonância com este. Não é estranho, portanto, constatar que a maior parte das teorias filosóficas têm correspondência com a história, isto é, a filosofia não é independente do tempo em que se produz. Ela é, pelo contrário, uma marca dos tempos, um fio condutor do pensamento ao longo do tempo, é, no meu ponto de vista, a história das ideias indispensáveis, que os homens produziram. Mas, ao mesmo tempo, esta é uma visão redutora de tudo o que a filosofia pode ser. Ela não é só a história do que já foi, é também a base do que será. Por outras palavras, a filosofia não remete exclusivamente para o passado, ela é, na maior partes das vezes, direcionada ao futuro. É o futuro que alimenta os homens, que os faz esperar, viver, e ter esperança, os homens desenham-se no seu próprio futuro. E esta é outra das considerações filosóficas inerentes ao tempo. No entanto, e pradoxalmente, “é a ausência de projecto que nos submete à tirania do presente” (Innerarity, 2010:12). Esta é uma frase que nos remete automaticamente para o mundo contemporâneo, para a velocidade e a rapidez da contemporaneidade, que não dão espaço à criação de projectos. A mudança incessante da realidade desvirtua qualquer pensamento para além do agora, a constante adaptação ao mundo não deixa espaço para a criação individual, tudo o que nos é exigido é que as regras sejam cumpridas, que nos habituemos ao caos e à ilusão da ordem, posto isso, o que faríamos com o tempo que (não) temos é indiferente. Há, no mundo actual, como que um esquecimento das formas mais simples em que o mundo aparece, o espaço e o tempo são, hoje,  revestidos de outros sentidos, extrínsecos ao próprio conceito, fabricados na sociedade tecnológica como ansiolíticos contra o questionar do sentido da vida.
É neste contexto que a filosofia se torna indispensável, ela ensina a ampliar os horizontes humanos, educa os pensamentos e interliga os conhecimentos. A filosofia é o pensamento próprio, possível em cada homem, que se desenvolve ou não. Depende da escolha de cada um, mergulhar na piscina onde desembocam todos os rios. A filosofia é essa piscina, e é o mergulho - o procurar o que somos num mar de possibilidades.


A Filosofia e a Arte

É certo que a filosofia tem uma história, tem um percurso descrito no tempo, tem elos de ligação com as diferentes épocas, faz parte da história do mundo e permitiu, de muitas maneiras, o nosso conhecimento de hoje quanto à realidade. Por outro lado, a arte é algo que se desenrolou paralelamente, que entra na mesma história e faz parte do mesmo mundo, necessita tanto dos homens como a filosofia e protagoniza em si, muitas ideias desta. Para mim, a arte podia ser considerada algo como ‘o pôr em prática da filosofia’. “A arte e a filosofia surgem de uma situação idêntica: a partir duma vacilação que tem algo de desconcerto, mas que sabe aproveitar esse adiamento” (Innerarity, 1995:34). A vacilação, neste sentido, é o momento da indecisão que nos remete para o pensar, para o reflectir, para o filosofar. É o questionar do nosso próprio ser, das nossas ações e das suas possibilidades, do mundo que nos rodeia e do qual fazemos parte, é um interrogar individual com respostas individuais, que cabe a cada um reinterpretar, avaliar e organizar. Assim como a arte, a filosofia depende da interpretação. E ambas dependem do homem, que se pensa e se traduz em arte, como uma extensão de si, como um prolongar-se no tempo, como um resquício de verdade de outros tempos, ou um pormenor do agora. A arte e a filosofia configuram-se nas entelinhas, isto é, o carácter de ambas é reflexivo, é para além de si mesmo. É necessário perceber que não basta olhar, é preciso reparar, no que está à vista e no que está escondido, dissimulado. É preciso reparar nas palavras suprimidas e nas misturas de cor, na tessitura configuradora do produto final, para que, finalmente, este nos apareça com sentido. A vida exige isto de nós, mesmo quando tentamos ignorar. Há sempre uma altura em que a vida exige uma configuração própria para que seja autêntica e experienciada, no fundo, para que seja vida.
A Arte, através de inúmeros recursos, possibilitou aos homens inscreverem-se no mundo através das sensações que este lhes faculta. A Arte é a sensação inscrita, que o artista contrói, para evidenciar emoções e sentimentos. Este processo, que aparece sob a forma de arte, é o chamado fenómeno estético. É o lugar onde os homens se despem e se expõem numa intimidade incontornável. Mas nem sempre foi assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida em conta. Isto porque, a Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível. Muitos séculos foram necessários para que o homem se pudesse expôr artisticamente, livre de regras e de preconceitos. Na antiguidade clásica, a Beleza era um a priori antes de qualquer relação sujeito-objecto, a única beleza válida era a beleza ordenada no universo, que seguia regras estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria eram conceitos obrigatórios a seguir na construção de qualquer obra de arte. Esta fase normativista vigora até ao século XVIII, o século em que aconteceu uma revolução no paradigma da beleza, da arte e do gosto.
São as disposições afectivas humanas que, sob a forma de interrogação, permitem a criação, como procura sobre o sentido do ser. Todos temos a certeza de uma finitude, a certeza de um nascer e de uma morte. Mas, o humano tem a capacidade de, através do gesto de criação, mergulhar no infinito através da própria finitude. Quando pensamos, quando transfiguramos a nossa vida num objecto de arte, quando acolhemoa a arte em nós, há sempre uma ‘reinvenção de mim’ que fica latente, que vem ao de cima, que nos convoca, que se invoca e se convulsiona. Somos, antes de tudo o mais, um corpo que se lança constantemente contra o mundo em busca de si próprio.
Quando falamos de arte, a vida humana pode assemelhar-se a uma viagem. Quando viajamos procuramos conhecer. Conhecer o rosto que é indefinido, de nós mesmos. Há uma diluição da nossa identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo conhecimento que desencadeia a viagem, é a curiosidade atormentada, um conhecimento que nos escapa continuamente, um saber amargo que se alcança, o horror de enfrentarmos a nossa imagem em diluição. A arte é exactamente essa viagem-tormento, e por mais que percorramos caminhos ainda desconhecidos, vamos sempre notar a presença de uma ausência, a busca atormentada da nossa própria imagem. É como se a arte fosse o desencadear de uma reconfiguração do mundo. O ser, o pensar e o criar são as instâncias configuradoras de sentido, que estão ao nosso alcance. Resta-nos fazer delas um modo de estar-no-mundo.
A arte é um modo de conhecer. É uma forma de chegarmos a nós mesmos, de descermos abaixo da superfície da pele, daquilo que vêmos, é uma forma de nos representarmos e de pensarmos o mundo, no fundo, é uma maneira de chegarmos ao nosso ser, ao que somos. Há um excesso no humano, no homem, em nós. Um excesso que, por vezes, não conseguimos conter e que se torna necessário expulsar, como uma voz que não conseguimos expressar mas que vive em nós. O homem vive num constante tormento consigo mesmo, numa constante luta interior que tenta vencer, mas que, por vezes, se torna maior que ele. Há na arte a intensidade de um abismo constante, onde caminhamos continuamente, que nos impele continuamente a sermos aquilo que não sabemos que somos. Temos em nós a força selvagem das emoções em estado bruto, e temos que canalizar essas pulsões para que consigamos viver. A nossa imponderabilidade, a nossa instabilidade e a nossa inquietação, é o que se transfigura em obras de Arte. É graças a essas pulsões humanas que o gesto criativo se apodera de nós e nos permite a reinvenção do mundo. Cada obra é uma densidade existencial, uma radicação. Há algo que permanece constante em nós e algo que nos escapa continuamente, um resquício de sentido que constantemente nos interpela, mas que é despojado de lógica argumentativa.
É por isto que a arte e a filosofia são uma só alma. Alma no sentido de anima (Logos, 1989, Alma:151), do corpo que se move, respira, tem alento, tem sangue, o princípio de vida e do pensamento. A alma de ambas é, então, uma pulsão existencial que revela o humano na sua humanidade mais radical. “Os filósofos (os ou cientistas) gostam de reflectir. Os artistas têm mais necessidade de sentir. Mas pode-se estar cheio de sentimento e incapaz de exprimir qualquer coisa. É preciso evidentemente sentir profundamente para produzir uma obra, mas também sentir com clareza: sem coerência, não há arte possível (Huisman, 2008:91). A arte e a filosofia conjugam a reflexão e o sentir, configuram o sensível e o inteligível, no mesmo ser.


A História, a Arte e a Filosofia

Não podemos datar concretamente o nascimento da arte, mas podemos atribuir a Platão, na história da filosofia ocidental, a primeira teoria sobre a Beleza. Mas assim como aparece com Platão a forma inteligível da Beleza, também aparece a condenação das belas-artes e da poesia. Para o filósofo, estas não passavam de criadoras de ilusão, de fábulas onde o poeta era um semeador de feitiçarias. Platão declarou a insuficiência ontológica radical das imagens, algures durante o século IV a.C. O desprezo platónico pela poesia e pela arte justifica-se pelo carácter mimético destas actividades: elas imitam aquelas realidades que em si mesmas já são imitações da realidade superior das ideias  (Logos, 1989, Estética:278). Passados séculos, ainda se encontra uma referência a este modo de pensar na teoria de Émile Durkheim (1858-1917), conjugado com a visão positivista típica do século XIX. Posto isto, é-nos claro que o estudo da arte e da imagem não é algo recente nem uma preocupação actual. As imagens sempre foram portadoras de algo mais do que o que mostram e, é exactamente esse, o carácter paradoxal daquilo que se vê e, no entanto, se desconhece. A imagem é, neste prisma, a perfeita representação do que somos para nós mesmos, os portadores de um ser que se desconhece a si mesmo. Mas Platão não deixa de ser o começo da arte, na medida em que foi a Beleza, um dos vértices da Teoria das Ideias, proclamada pelo filósofo, que deu origem ao princípio e mote da criação artística. A beleza é um dos vértices da filosofia platónica, e é a protagonista de toda a teoria estética que o mundo contempla ainda hoje. Kant (1724-1804), com a sua terceira crítica, intitulada Crítica da Faculdade de Julgar, é um dos responsáveis por esta nova perspectiva que liga a intuição sensível ao conhecimento, que faz a ponte entre o sensível e o inteligível. Foi Kant quem conferiu à Estética o carácter de disciplina filosófica, que abriu lugar à ciência da sensibilidade em geral (Pereira, 2007:142).  Podemos então atribuir ao kantismo uma nova teoria do Gosto. Segundo Denis Huisman, na sua obra A Estética, “Para Kant, o gosto não é somente um gefuhlsurtheil, um juízo do sentimento: é igualmente um sentimento do juízo, o mesmo é dizer, um universal necessário afectivo” (Huisman, 2008:36). Posto isto, a estética reconfigura-se, abre-se ao mundo como um novo saber, um novo estar-no-mundo. Uma nova forma de encarar a Beleza, o Gosto, a Afectividade e o Sentimento.
Estética tem uma raiz etimológica grega que reivindica os termos de percepção sensorial, sensação, em português. Se nos debruçarmos num qualquer dicionário de filosofia a descrição obtida sobre a estética tem qualquer coisa a ver com o “Estudo do que é imediatamente agradável à nossa percepção visual ou auditiva ou à nossa imaginação: o estudo da natureza da beleza; é também a teoria do gosto e da crítica, nas artes criativas e performativas”  (Thomas Mautner, 2010:271). Sendo assim, a estética consagrou-se uma disciplina filosófica em todo o explendor, contemplando não só a sensibilidade, mas o modo como esta nos guia ao conhecimento. A palavra foi pela primeira vez usada por Alexander Baumgarten (1714-1762). O seu estudo produziu uma obra intitulada ‘Aesthetica’ (1750), para a qual foram cruciais as contribuições de filósofos como Platão, Aristóteles, Hume, Kant, Hegel e Schopenhauer. Na evolução histórica da estética há, então, duas fases fundamentais: uma fase preponderantemente normativista, que vigora até à sua fundação em 1750, e que conjuga a teoria da beleza com a doutrina normativa da arte. Na segunda fase, até à contemporaneidade, a estética perde a apetência legisladora e a noção da existência de uma beleza absoluta e paradigmática é paulatinamente substituída pela prioridade dada ao tema da particularidade do juízo de gosto  (Logos, 1989, Estética:278). O século XVIII é composto por uma dualidade entre o eixo da razão e o eixo do sensível, há a emancipação de uma razão antropológica e uma emancipação dos sentidos. É nesta altura que se começa a dar relevo ao efeito emocional das obras de arte. O efeito catarse é o apelo da arte à emocionalidade dos receptores, e o próprio autor da obra está contido nesse efeito. A arte torna-se então uma expressão subjectiva e a estética torna-se uma epistemologia da sensibilidade.
No século XX, a estética aparece então como algo de diversificado, onde se verifica uma multiplicidade de orientações. No entanto existem ainda duas visões cindidas sobre o modo de conceber a estética. Uma é orientada no sentido da indagação do papel do sujeito e das questões que estão associadas a este, tais como a percepção, a experiência estética, a inspiração criadora – são questões filosóficas direcionadas à subjectividade. Por outro lado, temos a concepção de estética cientificista, isto é, direcionada para a objectividade da forma/obra, a estética como ciência positiva. O positivismo atribuia à estética a análise do rigor técnico, desvirtuava o lado emocional e arbitrário para dar prevalencia à objectividade do sistema de valores de uma época.
É então claro que há posições divergentes quanto à estética e tudo o que ela contempla. Actualmente, contudo, podemos atribuir outras significações e clarificações ao termo. Estas aproximam cada vez mais a estética do mundo contemporâneo.  têm o efeito de convocar os homens para si mesmos, para a própria subjectividade. Considerada psicologicamente, a experiência estética é uma disposição da pessoa inteira que se exprime numa música íntima e ganha forma numa voz interior. E acompanhada por sentimentos que pretendem exprimir-se (Heinemann, 2010:456). Posto isto, podemos atribuir à estética um estatuto psicológico, inerente ao homem, que, em última análise, constitui o carácter estético deste. Podemos então assumir que há, no humano, uma capacidade inata para conceber o artístico,


O Mundo Moderno e a Arte:

O mundo moderno não torna desnecessárias a filosofia e as ciências do espírito. É mais ao contrário: precisa mais delas que qualquer outra cultura. 
(Innerarity, 1995:16)

Vivemos na era da velocidade, do rápido, do acelerado, da ansia de futuro. A arte vê-se assim no meio de um paradoxo, onde o tempo da contemplação foi substituído pelo tempo da transação, onde os museus são locais turísticos e a obra de arte pertence ao campo da economia. Tudo isto podia significar uma revolução estética, um novo pensar sobre o tempo. Daniel Innerarity introduz, na sua obra, A filosofia como uma das belas artes, à qual faz referência o título desta monografia, um novo conceito que reformula a forma de encarar a arte na actualidade, que purifica a demora e a lentidão face à velocidade da mudança.
O conceito de cavilação transporta-nos para o “adiamento, [para a] dilação face aos resultados triviais que o pensamento nos dá quando o interrogamos sobre a vida e a morte, o sentido e o sem-sentido, o ser e o nada” (Innerarity, 1995:41). Esta forma de estar-no-mundo não é nova nem original, é antes de mais a forma primordial da filosofia, que se foi esquecendo na aceleração dos motores e na rapidez da velocidade. É crucial perceber-se que é através da demora que as coisas ganham sentido, que as linhas de desenham e os pensamentos se formulam. É na demora que temos tempo para nos conhecermos, para nos contemplarmos nas nossas infinidades, nos nossos pormenores detentores de particularidades que nos compõem. Entre o humano e o mundo há essa correspondência inata, essa demora necessária para refletir sobre pormenores que, às vezes, são invisíveis. É crucial resuscitar a cavilação no sentido de atenção ao meio circundante, enquanto portadores de um eu que se move nesse meio. “A filosofia é atenção e aprendizagem, experiência ganha nas relações com a realidade  (Innerarity, 1995:45). É neste ponto que a filosofia tem uma relação com a arte, a arte necessita tanto dessa atenção, dessa cavilação, como a filosofia. Para que a arte se espelhe em nós é necessária toda uma atenção, uma demora, um desacelerar do tempo que nos instiga à velocidade do quotidiano. “A filosofia pode ser considerada como uma das belas artes na medida em que coopera com ela na ampliação e concentração do nosso sentido de realidade. São verdadeiras estratégias de resistência contra a desrealização” (Innerarity,1995:45), com esta afirmação Innerarity corrobora o ponto de vista que quis trazer à luz. A filosofia e a arte desenrolam-se no mesmo tempo, isto é, protagonizam uma instância temporal própria, onde o exercício da cavilação é o ponto de partida para a sua percepção e receptividade. É então crucial promover este modo de estar, promover a demora face à velocidade, a reflexividade face à aceleração.
Vivemos na era do progresso onde tempo vale dinheiro e onde proclamar a demora se reveste de conotação irónica, mas, ultrapassando o receio de interpretações preconceituosas, coisa que os filósofos são exímios a fazer, chegamos ao terreno fértil da desaceleração, do tempo dedicado à experiência própria, à culturização do eu, à radicação existêncial da filosofia. Innerarity chega ainda mais longe ao afirmar que “só é possível agir suspendendo ficticiamente o curso do tempo” (1995:47). Pensar exige tempo que o mundo da ‘sociedade tecnológica’ não possui. É então necessário reivindicar esse tempo a nós próprios, à nossa vida, para que nos consigamos guiar no mundo-sem-tempo que é a realidade social. Suspender ficticiamente o curso do tempo de forma a construírmos as nossas ideias, desmascararmos as ilusões e protelarmos o envelhecimento das nossas experiências. A experiência constitui um dado fundamental do nosso conhecimento, mas, com a aceleração, estas tornam-se cada vez mais fugazes e envelhecidas, o tempo do agora ignora todos os outros tempos e não os repensa nem os imagina, faz-se vivendo, numa amálgama de conceitos incompreendidos, de teorias não problematizadas e de doutrinas meramente aceites sem questionamento. O envelhecimento daquilo que vivemos e que nos constitui é assinalado por nós ao olhar só para o presente, ignorando todos os outros tempos. Esta ignorância é inconsciente, é personificada pela ‘sociedade tecnológica’, pela expectativa sem experiência, que se torna a ilusão do nosso século. A lógica contemporânea da inovação e do progresso confina as experiências à superficialidade. Estas não são profundas nem duram no tempo, são rápidas e têm pressa de mudança. Mas, e segundo Innerarity, “a recuperação do sentido da realidade requer outro ritmo” (1995:53), requer a perfuração da superficialidade, requer a lentidão como reflexividade, requer que a arte seja experiência reconstrutora de sentido no caos da velocidade.


Conclusão:

Todos os vocábulos com pretensão de ocupar um lugar central na definição de arte – utopia, manifestação, crítica, provocação, revolta – deveriam ceder o lugar a outros mais tranquilos e reflexivos: experiência, prazer, variação, pluralidade, lembrança, catarse, identificação. 
(Innerarity, 1995:61)

            Quando falamos de filosofia é imediatamente perceptível a relação que esta mantém com as conclusões silogísticas e com o tom argumentativo, mas, no meu ponto de vista, este é só um dos lados pelos quais se pode olhar a filosofia. Esta não é, de todo, algo de simplesmente objectivo, exterior. O seu valor está, precisamente, na paixão existencial de que é portadora. Há muitas disciplinas que não necessitam da paixão existencial para se processarem, para mostrarem resultados ou para concluirem qualquer aplicação. A filosofia não pode manter esta distância em relação ao mundo, não pode concentrar-se só numa parte, tem que ter sempre em vista o todo. Enquanto as outras disciplinas são independentes de quem as executa a filosofia nunca é independente de quem a faz, neste caso, do homem. O modo de pensar em filosofia é inseparável do modo de ser. Nietzsche vai mais longe ainda e assume que o produto do filósofo é a sua vida (mais do que as suas obras).
Posto isto, podemos constatar que o caminho começa por um descobrir do próprio ser, seguindo orientações esquecidas, criando novas, construindo paulatinamente um modo de estar que interliga aquilo que somos com aquilo que é o mundo. Um modo de estar que, além de não descurar todos os outros, reconfigura-os na amálgama indefinida que é o mundo. A filosofia contém elos de ligação cruciais para que se conceba o todo, para que o pensamento se construa sobre uma base sólida onde a argumentação é usada sem subterfúgios dessimulados. O mundo é feito de artifícios e hoje vivemos numa época repleta de exemplos disso. A artificialidade é, contudo, uma das características humanas. É por um lado uma questão cultural, mas, por outro, é uma construção própria. O humano artificializa-se para se apresentar ao mundo, para divagar nele, para tentar ser o mais próximo do seu ideal. No entanto, este artificio serve igualmente de camuflagem, serve de amortecimento contra o mundo, como uma proteção invisível que os homens têm propensão para tecer à volta de si próprios. E, num mundo fragmentado como é o actual, as artificialidades são cada vez em maior número, chegando ao ponto de os homens se poderem interrogar sobre se vivem no mesmo mundo, ou se se conhecem. Innerarity apresenta a arte como solução para este problema, a arte na sua manifestação hermenêutica, a arte da compreensão - a filosofia como arte. É a hermenêutica a única capaz de intervir no sentido de estabelecer um entendimento entre os sujeitos individuais. “Só a arte está em condições de lançar pontes entre subjectividades que habitam um mundo fragmentado (Innerarity, 1995:96). É como se esta assumisse em si o indizível que há no mundo, como se enunciasse todas as palavras que não existem. O Homem tentou desde sempre construir fórmulas que o ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si próprio. E foi através da Arte que conseguiu a melhor expressão subjectiva de si mesmo. A criação procura sempre algo, transforma a necessidade de nos encontrarmos em beleza, e a beleza torna-se então necessária. Mas na origem dessa beleza está sempre a ferida, uma ferida aberta, que os Homens conservam em si nesta passagem pela finitude da vida. A ferida é exactamente essa finitude não explicada que se invoca em cada obra de arte, em cada pensamento artístico, em cada gesto de criação. Gestos que são ‘gestos-palavra’ - gestos que dizem metaforicamente o mundo.
Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis. Assistimos a uma busca de outras categorias afectivas, o efeito estético evolui para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos, passam a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o grotesco, o sublime, etc. A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de comunicação e a dimensão passional passa a ser a protagonista. A estética passa a ser encarada como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. Estética como uma poética da percepção.



Bibliografia
Adalberto Dias de Carvalho. (2006). Dicionário de Filosofia da Educação. Porto: Porto Editora.
Huisman, D. (2008). A Estética. Lisboa: Edições 70.
Innerarity, D. (1995). A filosofia como uma das belas artes. Lisboa: Editorial Teorema.
Innerarity, D. (2010). O futuro e os seus inimigos. Lisboa: Editorial Teorema.
Logos. (1989). Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/São Paulo: Verbo.
Pereira, P. C. (2007). Do Sentir e do Pensar. Porto.
Thomas Mautner. (2010). Dicionário de Filosofia. Lisboa: Edições 70.


Teresa Rolla




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