“A filosofia é o ambiente musical
do suspense. Filosofia como algo emocionente? Pois sim, sujeita também, então,
à decepção. A filosofia é fundamentalmente uma expectativa; a ela confia-se-lhe
muito, às vezes mais do que ela pode.“
(Innerarity, 1995, p.9)
A
Filosofia
A filosofia pode ser apresentada de
diversas maneiras, pode vestir-se de temas, de teorias, de doutrinas e de
simples ideias, pode assumir diversas personalidades e expectativas, pode até
disfarçar-se. A filosofia é, então, o espaço necessário ao pensamento, onde
este se constrói, é a arena das ideias, onde estas se apresentam e se discutem,
é o campo lavrado ou por lavrar ainda, onde a atenção é a semente.
Simplificando, a filosofia é a construção do pensamento próprio.
Podemos dizer que a filosofia é uma casa onde todos podem
entrar, onde a porta está sempre aberta e não há excluídos, onde cada um
descobre o seu próprio recanto insubstituível. Não há uma maneira específica
que decrete o que é a filosofia, há muitas maneiras. Posto isto, cabe-nos escolher
o caminho a seguir, a pulsão mais forte que nos guia e nos icentiva a
continuar, cabe a cada um de nós escolher que leis regem o seu próprio mundo
dentro do mundo de todos. Mas, é imprescindivel notar que estes serão só
aqueles que se comprometerem com a atitude crítica que é a filosofia, aqueles
que se comprometerem consigo próprios na busca do sentido, que se comprometerem
com a procura incessante de respostas, que acalentam o espírito, quando as
perguntas são maiores do que nós.
A filosofia não é nada se não
fizermos algo com ela, se não lhe tocarmos, se não remexermos no seu íntimo com
as próprias mãos. É essa a parte criativa e artística que a filosofia despoleta,
o convite à participação, à criação. A filosofia abre horizontes, potencia a
criatividade, obriga à reflexão. A filosofia é, simplificando, pôr em prática a
célebre frase de Sócrates: conhece-te a
ti mesmo. É uma orientação criada a partir de nós próprios, onde nos
assumimos como humanos em todas as suas paricularidades, anseios e
interrogações, onde nos despimos das ilusões com que mentimos a nós próprios,
com que nos fomos construindo e iludindo na pressa de chegar a tempo. Mas
afinal que tempo é este? Que meta é esta? A
filosofia como uma das belas artes é exactamente a resposta a estas duas
perguntas, é a orientação de um modo de pensar que contempla a filosofia como
uma arte de estar-no-mundo.
Antes de mais, é preciso ter em conta
que a filosofia é feita por homens, os filósofos são homens reais que existiram
e que, nessa existência, pensaram aquilo que hoje conhecemos deles. A filosofia
depende da vida humana e o filosofar é, acima de tudo, uma radicação existencial
humana. É a vida, em toda a sua complexidade, que proporciona o filosofar. É
porque somos humanos, com todas as características intrínsecas a essa condição,
que encontramos a filosofia. Deparamos com ela no mais íntimo do que somos, nos
subterrâneos das nossas ideias e pensamentos. É certo que há pessoas com uma
maior tendência para problematizar a existência, por necessidade ou por
ociosidade. Mas, do meu ponto de vista, é ainda possível que todas as pessoas,
sem excepção, tenham perguntado, am alguma altura, perante a própria vida: qual
é o sentido disto? Clarificar esta resposta é abrir a porta à filosofia. É
procurar o que outros disseram acerca do mesmo, é perceber a nossa posição face
a isso, é questionar, indagar, desejar, escolher.
Um carácter filosófico não se adquire
de uma vez, vai-se construindo, devagar, porque só devagar é que se consegue
pensar claramente, fazer conjecturas, tomar anotações, deliberar, produzir.
Nenhuma destas coisas se consegue fazer bem sem o tempo necessário. O tempo,
além de ser um problema filosófico (que não analisarei aqui), é ainda o
detentor da possibilidade filosófica. A filosofia faz-se no tempo e muitas
vezes, em consonância com este. Não é estranho, portanto, constatar que a maior
parte das teorias filosóficas têm correspondência com a história, isto é, a
filosofia não é independente do tempo em que se produz. Ela é, pelo contrário,
uma marca dos tempos, um fio condutor do pensamento ao longo do tempo, é, no
meu ponto de vista, a história das ideias indispensáveis, que os homens
produziram. Mas, ao mesmo tempo, esta é uma visão redutora de tudo o que a
filosofia pode ser. Ela não é só a história do que já foi, é também a base do
que será. Por outras palavras, a filosofia não remete exclusivamente para o passado,
ela é, na maior partes das vezes, direcionada ao futuro. É o futuro que
alimenta os homens, que os faz esperar, viver, e ter esperança, os homens
desenham-se no seu próprio futuro. E esta é outra das considerações filosóficas
inerentes ao tempo. No entanto, e pradoxalmente, “é a ausência de projecto que nos submete à tirania do presente” (Innerarity,
2010:12). Esta é uma frase que nos remete automaticamente para o mundo
contemporâneo, para a velocidade e a rapidez da contemporaneidade, que não dão
espaço à criação de projectos. A mudança incessante da realidade desvirtua
qualquer pensamento para além do agora, a constante adaptação ao mundo não
deixa espaço para a criação individual, tudo o que nos é exigido é que as
regras sejam cumpridas, que nos habituemos ao caos e à ilusão da ordem, posto
isso, o que faríamos com o tempo que (não) temos é indiferente. Há, no mundo
actual, como que um esquecimento das formas mais simples em que o mundo
aparece, o espaço e o tempo são, hoje, revestidos de outros sentidos, extrínsecos ao
próprio conceito, fabricados na sociedade tecnológica como ansiolíticos contra
o questionar do sentido da vida.
É neste contexto que a filosofia se
torna indispensável, ela ensina a ampliar os horizontes humanos, educa os
pensamentos e interliga os conhecimentos. A filosofia é o pensamento próprio,
possível em cada homem, que se desenvolve ou não. Depende da escolha de cada um,
mergulhar na piscina onde desembocam todos os rios. A filosofia é essa piscina,
e é o mergulho - o procurar o que somos num mar de possibilidades.
A
Filosofia e a Arte
É certo que a filosofia tem uma
história, tem um percurso descrito no tempo, tem elos de ligação com as
diferentes épocas, faz parte da história do mundo e permitiu, de muitas
maneiras, o nosso conhecimento de hoje quanto à realidade. Por outro lado, a
arte é algo que se desenrolou paralelamente, que entra na mesma história e faz
parte do mesmo mundo, necessita tanto dos homens como a filosofia e protagoniza
em si, muitas ideias desta. Para mim, a arte podia ser considerada algo como ‘o
pôr em prática da filosofia’. “A arte e a
filosofia surgem de uma situação idêntica: a partir duma vacilação que tem algo
de desconcerto, mas que sabe aproveitar esse adiamento” (Innerarity, 1995:34).
A vacilação, neste sentido, é o
momento da indecisão que nos remete para o pensar, para o reflectir, para o
filosofar. É o questionar do nosso próprio ser, das nossas ações e das suas
possibilidades, do mundo que nos rodeia e do qual fazemos parte, é um
interrogar individual com respostas individuais, que cabe a cada um
reinterpretar, avaliar e organizar. Assim como a arte, a filosofia depende da
interpretação. E ambas dependem do homem, que se pensa e se traduz em arte,
como uma extensão de si, como um prolongar-se no tempo, como um resquício de
verdade de outros tempos, ou um pormenor do agora. A arte e a filosofia
configuram-se nas entelinhas, isto é, o carácter de ambas é reflexivo, é para
além de si mesmo. É necessário perceber que não basta olhar, é preciso reparar,
no que está à vista e no que está escondido, dissimulado. É preciso reparar nas
palavras suprimidas e nas misturas de cor, na tessitura configuradora do
produto final, para que, finalmente, este nos apareça com sentido. A vida exige
isto de nós, mesmo quando tentamos ignorar. Há sempre uma altura em que a vida
exige uma configuração própria para que seja autêntica e experienciada, no
fundo, para que seja vida.
A Arte, através de inúmeros
recursos, possibilitou aos homens inscreverem-se no mundo através das sensações
que este lhes faculta. A Arte é a sensação inscrita, que o artista contrói,
para evidenciar emoções e sentimentos. Este processo, que aparece sob a forma
de arte, é o chamado fenómeno estético. É
o lugar onde os homens se despem e se expõem numa intimidade incontornável. Mas
nem sempre foi assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida em conta. Isto porque, a
Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível. Muitos séculos
foram necessários para que o homem se pudesse expôr artisticamente, livre de
regras e de preconceitos. Na antiguidade clásica, a Beleza era um a priori antes de qualquer relação sujeito-objecto, a
única beleza válida era a beleza ordenada no universo, que seguia regras
estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria eram conceitos obrigatórios a
seguir na construção de qualquer obra de arte. Esta fase normativista vigora
até ao século XVIII, o século em que aconteceu uma revolução no paradigma da
beleza, da arte e do gosto.
São as disposições afectivas humanas
que, sob a forma de interrogação, permitem a criação, como procura sobre o
sentido do ser. Todos temos a certeza de uma finitude, a certeza de um nascer e
de uma morte. Mas, o humano tem a capacidade de, através do gesto de criação, mergulhar
no infinito através da própria finitude. Quando pensamos, quando transfiguramos
a nossa vida num objecto de arte, quando acolhemoa a arte em nós, há sempre uma
‘reinvenção de mim’ que fica latente, que vem ao de cima, que nos
convoca, que se invoca e se convulsiona. Somos, antes de tudo o mais, um corpo
que se lança constantemente contra o mundo em busca de si próprio.
Quando falamos de arte, a vida
humana pode assemelhar-se a uma viagem. Quando viajamos procuramos conhecer.
Conhecer o rosto que é indefinido, de nós mesmos. Há uma diluição da nossa
identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo conhecimento que desencadeia a
viagem, é a curiosidade atormentada, um conhecimento que nos escapa
continuamente, um saber amargo que se alcança, o horror de enfrentarmos a nossa
imagem em diluição. A arte é exactamente essa viagem-tormento, e por mais que
percorramos caminhos ainda desconhecidos, vamos sempre notar a presença de uma
ausência, a busca atormentada da nossa própria imagem. É como se a arte fosse o
desencadear de uma reconfiguração do mundo. O ser, o pensar e o criar são as
instâncias configuradoras de sentido, que estão ao nosso alcance. Resta-nos
fazer delas um modo de estar-no-mundo.
A arte é um modo de conhecer. É uma
forma de chegarmos a nós mesmos, de descermos abaixo da superfície da pele,
daquilo que vêmos, é uma forma de nos representarmos e de pensarmos o mundo, no
fundo, é uma maneira de chegarmos ao nosso ser, ao que somos. Há um excesso no
humano, no homem, em nós. Um excesso que, por vezes, não conseguimos conter e
que se torna necessário expulsar, como uma voz que não conseguimos expressar
mas que vive em nós. O homem vive num constante tormento consigo mesmo, numa
constante luta interior que tenta vencer, mas que, por vezes, se torna maior
que ele. Há na arte a intensidade de um abismo constante, onde caminhamos
continuamente, que nos impele continuamente a sermos aquilo que não sabemos que
somos. Temos em nós a força selvagem das emoções em estado bruto, e temos que canalizar
essas pulsões para que consigamos viver. A nossa imponderabilidade, a nossa
instabilidade e a nossa inquietação, é o que se transfigura em obras de Arte. É
graças a essas pulsões humanas que o gesto criativo se apodera de nós e nos
permite a reinvenção do mundo. Cada obra é uma densidade existencial, uma
radicação. Há algo que permanece constante em nós e algo que nos escapa
continuamente, um resquício de sentido que constantemente nos interpela, mas
que é despojado de lógica argumentativa.
É por isto que a arte e a filosofia
são uma só alma. Alma no sentido de anima
(Logos, 1989,
Alma:151), do corpo que se move, respira, tem alento, tem sangue, o
princípio de vida e do pensamento. A alma de ambas é, então, uma pulsão
existencial que revela o humano na sua humanidade mais radical. “Os filósofos (os ou cientistas) gostam de
reflectir. Os artistas têm mais necessidade de sentir. Mas pode-se estar cheio
de sentimento e incapaz de exprimir qualquer coisa. É preciso evidentemente
sentir profundamente para produzir uma obra, mas também sentir com clareza: sem
coerência, não há arte possível” (Huisman, 2008:91).
A arte e a filosofia conjugam a reflexão e o sentir, configuram o sensível e o
inteligível, no mesmo ser.
A
História, a Arte e a Filosofia
Não podemos datar concretamente o
nascimento da arte, mas podemos atribuir a Platão, na história da filosofia
ocidental, a primeira teoria sobre a Beleza.
Mas assim como aparece com Platão a forma inteligível da Beleza, também aparece a condenação das belas-artes e da poesia. Para
o filósofo, estas não passavam de criadoras de ilusão, de fábulas onde o poeta
era um semeador de feitiçarias. Platão declarou a insuficiência ontológica
radical das imagens, algures durante o século IV a.C. O desprezo platónico pela poesia e pela arte justifica-se pelo carácter
mimético destas actividades: elas imitam aquelas realidades que em si mesmas já
são imitações da realidade superior das ideias
(Logos, 1989, Estética:278). Passados
séculos, ainda se encontra uma referência a este modo de pensar na teoria de
Émile Durkheim (1858-1917), conjugado com a visão positivista típica do século XIX.
Posto isto, é-nos claro que o estudo da arte e da imagem não é algo recente nem
uma preocupação actual. As imagens sempre foram portadoras de algo mais do que
o que mostram e, é exactamente esse, o carácter paradoxal daquilo que se vê e,
no entanto, se desconhece. A imagem é, neste prisma, a perfeita representação
do que somos para nós mesmos, os portadores de um ser que se desconhece a si
mesmo. Mas Platão não deixa de ser o começo da arte, na medida em que foi a Beleza, um dos vértices da Teoria das
Ideias, proclamada pelo filósofo, que deu origem ao princípio e mote da criação
artística. A beleza é um dos vértices da filosofia platónica, e é a protagonista
de toda a teoria estética que o mundo contempla ainda hoje. Kant (1724-1804),
com a sua terceira crítica, intitulada Crítica
da Faculdade de Julgar, é um dos responsáveis por esta nova perspectiva que
liga a intuição sensível ao conhecimento, que faz a ponte entre o sensível e o
inteligível. Foi Kant quem conferiu à Estética o carácter de disciplina
filosófica, que abriu lugar à ciência da
sensibilidade em geral (Pereira, 2007:142).
Podemos então atribuir ao kantismo uma nova teoria do Gosto. Segundo
Denis Huisman, na sua obra A Estética,
“Para Kant, o gosto não é somente um
gefuhlsurtheil, um juízo do sentimento: é igualmente um sentimento do juízo, o
mesmo é dizer, um universal necessário afectivo” (Huisman, 2008:36). Posto
isto, a estética reconfigura-se, abre-se ao mundo como um novo saber, um novo
estar-no-mundo. Uma nova forma de encarar a Beleza, o Gosto, a Afectividade e o
Sentimento.
Estética tem uma raiz etimológica grega que reivindica os termos de
percepção sensorial, sensação, em português. Se nos debruçarmos num qualquer
dicionário de filosofia a descrição obtida sobre a estética tem qualquer coisa a ver com o “Estudo do que é imediatamente agradável à nossa percepção visual ou
auditiva ou à nossa imaginação: o estudo da natureza da beleza; é também a
teoria do gosto e da crítica, nas artes criativas e performativas” (Thomas Mautner, 2010:271). Sendo assim, a
estética consagrou-se uma disciplina filosófica em todo o explendor,
contemplando não só a sensibilidade, mas o modo como esta nos guia ao
conhecimento. A palavra foi pela primeira vez usada por Alexander Baumgarten
(1714-1762). O seu estudo produziu uma obra intitulada ‘Aesthetica’ (1750), para a qual foram cruciais as contribuições de
filósofos como Platão, Aristóteles, Hume, Kant, Hegel e Schopenhauer. Na
evolução histórica da estética há,
então, duas fases fundamentais: uma fase preponderantemente normativista, que
vigora até à sua fundação em 1750, e que conjuga a teoria da beleza com a
doutrina normativa da arte. Na segunda fase, até à contemporaneidade, a estética perde a apetência legisladora e a noção da existência de uma beleza
absoluta e paradigmática é paulatinamente substituída pela prioridade dada ao
tema da particularidade do juízo de gosto
(Logos, 1989, Estética:278).
O século XVIII é composto por uma dualidade entre o eixo da razão e o eixo
do sensível, há a emancipação de uma razão antropológica e uma emancipação dos
sentidos. É nesta altura que se começa a dar relevo ao efeito emocional das
obras de arte. O efeito catarse é o apelo da arte à emocionalidade dos
receptores, e o próprio autor da obra está contido nesse efeito. A arte
torna-se então uma expressão subjectiva e a estética torna-se uma epistemologia
da sensibilidade.
No século XX, a estética aparece então como algo de diversificado, onde se verifica
uma multiplicidade de orientações. No entanto existem ainda duas visões
cindidas sobre o modo de conceber a estética.
Uma é orientada no sentido da indagação do papel do sujeito e das questões que
estão associadas a este, tais como a percepção, a experiência estética, a
inspiração criadora – são questões filosóficas direcionadas à subjectividade.
Por outro lado, temos a concepção de estética cientificista, isto é,
direcionada para a objectividade da forma/obra, a estética como ciência
positiva. O positivismo atribuia à estética a análise do rigor técnico,
desvirtuava o lado emocional e arbitrário para dar prevalencia à objectividade
do sistema de valores de uma época.
É então claro que há posições
divergentes quanto à estética e tudo
o que ela contempla. Actualmente, contudo, podemos atribuir outras
significações e clarificações ao termo. Estas aproximam cada vez mais a estética do mundo contemporâneo. têm o efeito de convocar os homens para si
mesmos, para a própria subjectividade. Considerada
psicologicamente, a experiência estética é uma disposição da pessoa inteira que
se exprime numa música íntima e ganha forma numa voz interior. E acompanhada
por sentimentos que pretendem exprimir-se (Heinemann, 2010:456). Posto
isto, podemos atribuir à estética um
estatuto psicológico, inerente ao homem, que, em última análise, constitui o
carácter estético deste. Podemos então assumir que há, no humano, uma
capacidade inata para conceber o artístico,
O
Mundo Moderno e a Arte:
O mundo moderno não torna
desnecessárias a filosofia e as ciências do espírito. É mais ao contrário:
precisa mais delas que qualquer outra cultura.
(Innerarity, 1995:16)
Vivemos na era da velocidade, do
rápido, do acelerado, da ansia de futuro. A arte vê-se assim no meio de um
paradoxo, onde o tempo da contemplação foi substituído pelo tempo da transação,
onde os museus são locais turísticos e a obra de arte pertence ao campo da
economia. Tudo isto podia significar uma revolução estética, um novo pensar
sobre o tempo. Daniel Innerarity introduz, na sua obra, A filosofia como uma das belas artes, à qual faz referência o
título desta monografia, um novo conceito que reformula a forma de encarar a
arte na actualidade, que purifica a demora e a lentidão face à velocidade da
mudança.
O conceito de cavilação transporta-nos para o “adiamento, [para a] dilação
face aos resultados triviais que o pensamento nos dá quando o interrogamos
sobre a vida e a morte, o sentido e o sem-sentido, o ser e o nada” (Innerarity,
1995:41). Esta forma de estar-no-mundo não é nova nem original, é antes de mais
a forma primordial da filosofia, que se foi esquecendo na aceleração dos
motores e na rapidez da velocidade. É crucial perceber-se que é através da
demora que as coisas ganham sentido, que as linhas de desenham e os pensamentos
se formulam. É na demora que temos tempo para nos conhecermos, para nos
contemplarmos nas nossas infinidades, nos nossos pormenores detentores de
particularidades que nos compõem. Entre o humano e o mundo há essa
correspondência inata, essa demora necessária para refletir sobre pormenores
que, às vezes, são invisíveis. É crucial resuscitar a cavilação no sentido de atenção ao meio circundante, enquanto
portadores de um eu que se move nesse meio. “A filosofia é atenção e aprendizagem, experiência ganha nas relações
com a realidade” (Innerarity, 1995:45).
É neste ponto que a filosofia tem uma relação com a arte, a arte necessita
tanto dessa atenção, dessa cavilação, como a filosofia. Para que a arte se espelhe
em nós é necessária toda uma atenção, uma demora, um desacelerar do tempo que
nos instiga à velocidade do quotidiano. “A
filosofia pode ser considerada como uma das belas artes na medida em que
coopera com ela na ampliação e concentração do nosso sentido de realidade. São
verdadeiras estratégias de resistência contra a desrealização” (Innerarity,1995:45),
com esta afirmação Innerarity corrobora o ponto de vista que quis trazer à luz.
A filosofia e a arte desenrolam-se no mesmo tempo, isto é, protagonizam uma
instância temporal própria, onde o exercício da cavilação é o ponto de partida para a sua percepção e
receptividade. É então crucial promover este modo de estar, promover a demora
face à velocidade, a reflexividade face à aceleração.
Vivemos na era do progresso onde
tempo vale dinheiro e onde proclamar a demora se reveste de conotação irónica,
mas, ultrapassando o receio de interpretações preconceituosas, coisa que os
filósofos são exímios a fazer, chegamos ao terreno fértil da desaceleração, do tempo
dedicado à experiência própria, à culturização do eu, à radicação existêncial
da filosofia. Innerarity chega ainda mais longe ao afirmar que “só é possível agir suspendendo ficticiamente
o curso do tempo” (1995:47). Pensar exige tempo que o mundo da ‘sociedade
tecnológica’ não possui. É então necessário reivindicar esse tempo a nós
próprios, à nossa vida, para que nos consigamos guiar no mundo-sem-tempo que é
a realidade social. Suspender
ficticiamente o curso do tempo de forma a construírmos as nossas ideias,
desmascararmos as ilusões e protelarmos o envelhecimento das nossas
experiências. A experiência constitui um dado fundamental do nosso
conhecimento, mas, com a aceleração, estas tornam-se cada vez mais fugazes e
envelhecidas, o tempo do agora ignora todos os outros tempos e não os repensa
nem os imagina, faz-se vivendo, numa amálgama de conceitos incompreendidos, de
teorias não problematizadas e de doutrinas meramente aceites sem
questionamento. O envelhecimento daquilo que vivemos e que nos constitui é assinalado
por nós ao olhar só para o presente, ignorando todos os outros tempos. Esta
ignorância é inconsciente, é personificada pela ‘sociedade tecnológica’, pela
expectativa sem experiência, que se torna a ilusão do nosso século. A lógica
contemporânea da inovação e do progresso confina as experiências à
superficialidade. Estas não são profundas nem duram no tempo, são rápidas e têm
pressa de mudança. Mas, e segundo Innerarity, “a recuperação do sentido da realidade requer outro ritmo” (1995:53),
requer a perfuração da superficialidade, requer a lentidão como reflexividade,
requer que a arte seja experiência reconstrutora de sentido no caos da
velocidade.
Conclusão:
Todos os vocábulos com
pretensão de ocupar um lugar central na definição de arte – utopia,
manifestação, crítica, provocação, revolta – deveriam ceder o lugar a outros mais
tranquilos e reflexivos: experiência, prazer, variação, pluralidade, lembrança,
catarse, identificação.
(Innerarity, 1995:61)
Quando
falamos de filosofia é imediatamente perceptível a relação que esta mantém com
as conclusões silogísticas e com o tom argumentativo, mas, no meu ponto de
vista, este é só um dos lados pelos quais se pode olhar a filosofia. Esta não é,
de todo, algo de simplesmente objectivo, exterior. O seu valor está,
precisamente, na paixão existencial de que é portadora. Há muitas disciplinas
que não necessitam da paixão existencial para se processarem, para mostrarem
resultados ou para concluirem qualquer aplicação. A filosofia não pode manter
esta distância em relação ao mundo, não pode concentrar-se só numa parte, tem que
ter sempre em vista o todo. Enquanto as outras disciplinas são independentes de
quem as executa a filosofia nunca é independente de quem a faz, neste caso, do
homem. O modo de pensar em filosofia é inseparável do modo de ser. Nietzsche
vai mais longe ainda e assume que o produto do filósofo é a sua vida (mais do
que as suas obras).
Posto isto, podemos constatar que o
caminho começa por um descobrir do próprio ser, seguindo orientações
esquecidas, criando novas, construindo paulatinamente um modo de estar que
interliga aquilo que somos com aquilo que é o mundo. Um modo de estar que, além
de não descurar todos os outros, reconfigura-os na amálgama indefinida que é o
mundo. A filosofia contém elos de ligação cruciais para que se conceba o todo,
para que o pensamento se construa sobre uma base sólida onde a argumentação é
usada sem subterfúgios dessimulados. O mundo é feito de artifícios e hoje
vivemos numa época repleta de exemplos disso. A artificialidade é, contudo, uma
das características humanas. É por um lado uma questão cultural, mas, por
outro, é uma construção própria. O humano artificializa-se para se apresentar
ao mundo, para divagar nele, para tentar ser o mais próximo do seu ideal. No
entanto, este artificio serve igualmente de camuflagem, serve de amortecimento
contra o mundo, como uma proteção invisível que os homens têm propensão para
tecer à volta de si próprios. E, num mundo fragmentado como é o actual, as
artificialidades são cada vez em maior número, chegando ao ponto de os homens
se poderem interrogar sobre se vivem no mesmo mundo, ou se se conhecem.
Innerarity apresenta a arte como solução para este problema, a arte na sua
manifestação hermenêutica, a arte da compreensão - a filosofia como arte. É a
hermenêutica a única capaz de intervir no sentido de estabelecer um
entendimento entre os sujeitos individuais. “Só a arte está em condições de lançar pontes entre subjectividades que
habitam um mundo fragmentado” (Innerarity, 1995:96). É como se esta
assumisse em si o indizível que há no mundo, como se enunciasse todas as
palavras que não existem. O Homem tentou desde sempre construir fórmulas que o
ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si próprio. E foi através da Arte
que conseguiu a melhor expressão subjectiva de si mesmo.
A criação procura sempre algo, transforma a necessidade de nos encontrarmos
em beleza, e a beleza torna-se então necessária. Mas na origem dessa beleza
está sempre a ferida, uma ferida aberta, que os Homens conservam em si nesta
passagem pela finitude da vida. A ferida é exactamente essa finitude não
explicada que se invoca em cada obra de arte, em cada pensamento artístico, em
cada gesto de criação. Gestos que são ‘gestos-palavra’ - gestos que dizem
metaforicamente o mundo.
Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da
cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis.
Assistimos a uma busca de outras categorias afectivas, o efeito estético evolui
para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos,
passam a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o
grotesco, o sublime, etc. A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de
comunicação e a dimensão passional passa a ser a protagonista. A estética passa
a ser encarada como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. Estética
como uma poética da percepção.
Bibliografia
Adalberto Dias de
Carvalho. (2006). Dicionário de Filosofia da Educação. Porto: Porto
Editora.
Huisman, D. (2008). A
Estética. Lisboa: Edições 70.
Innerarity, D. (1995). A
filosofia como uma das belas artes. Lisboa: Editorial Teorema.
Innerarity, D. (2010). O
futuro e os seus inimigos. Lisboa: Editorial Teorema.
Logos. (1989). Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/São Paulo: Verbo.
Pereira, P. C. (2007). Do
Sentir e do Pensar. Porto.
Thomas Mautner. (2010).
Dicionário de Filosofia. Lisboa: Edições 70.
Teresa Rolla
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