terça-feira, 3 de novembro de 2015

George Steiner - Hóspedes da vida - in "Errata"


Todos nós somos hóspedes da vida. Não há nenhum ser humano que saiba o significado da sua criação, excepto ao nível mais primitivo e biológico. Não há nenhum homem nem nenhuma mulher que saiba qual é o objectivo (se é que existe…), qual o significado possível de ter sido atirado para o mistério da existência. Porque é que há algo em vez de nada? Porque é que eu existo? Somos hóspedes deste pequeno planeta, de uma urdidura infinitamente complexa, quiçá fortuita, de processos e mutações evolutivas que, em inúmeros estádios, poderia ter seguido um outro curso ou testemunhado a nossa extinção. Acabámos, aliás, por nos tornar hóspedes vândalos, produzindo lixo, explorando e destruindo outras espécies e recursos. Estamos a transformar rapidamente este ambiente extraordinariamente belo e intricadamente perfeito, e inclusive o espaço sideral, numa lixeira venenosa. Há caixotes do lixo na Lua. Por mais inspirado que seja o movimento ecológico que, juntamente com a emergente percepção dos direitos das crianças e dos animais, é dos poucos capítulos esclarecidos do nosso século, é bem possível que tenha vindo demasiado tarde.
Todavia, este vândalo não deixa de ser hóspede numa casa do ser que não construiu e cujo desígnio e arquitectura lhe escapam. Agora temos que aprender a ser hóspedes uns dos outros naquilo que resta desta terra sobrepovoada e degradada. As nossas guerras, as nossas limpezas étnicas, os arsenais de massacre que prosperam mesmo nos estados mais pobres, são territoriais. As ideologias e os ódios mútuos a que dão origem são territórios da mente. Desde sempre os homens têm-se atacado uns aos outros por causa de um pedaço de terra, sob diferentes trapos coloridos empunhados como bandeiras, a propósito de ténues diferenças na língua e no dialecto.


George Steiner, Errata, p.70-71

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