sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Flashbacks

Há coisas que nos acontecem que nem a nós próprios conseguimos explicar.

Se, por um lado, este tipo de experiência pode ser considerada ‘boa’ a longo prazo, na altura em que acontece deixa-nos, por completo, sem chão.

Coisas tão improváveis que, exatamente por isso, nos conseguem fazer rebobinar a nossa vida como poucas vezes conseguimos, muito menos quando queremos. Em frações de segundo assaltam-nos as mais variadas imagens que desencadeiam as perguntas derradeiras, que nunca queremos fazer.

"Como é que eu vim aqui parar?"

"O que é que eu faço?"

"Como reagir numa situação destas?"

"O que é o certo e o que é o errado?"

"Até onde é que eu consigo autocontrolar-me quando a realidade à minha volta está em completo colapso?"

Podemos chegar ainda a perguntas mais profundas, qualquer coisa entre uma ‘self’ interrogação acerca do que significa estar vivo (num mundo complexo onde há sempre qualquer coisa que nos falha) e, ao mesmo tempo, passar a maior parte dessa vida a achar tudo tão banal como a rua por onde passamos todos os dias e sabemos de cor.

Até que coisas impensáveis acontecem e o mundo treme, a realidade desfigura-se e nós ficamos perdidos num diálogo interno que acabará por decidir aquele futuro imediato.

Sim, porque tudo isto se passa, no máximo, numa fração de cinco minutos em que, por um toque de magia de um qualquer poder cerebral pouco usual, conseguimos ver-nos de fora. Como se saíssemos do nosso corpo e nos conseguíssemos ver através de outro.

É exatamente aí que o flashback acontece. Frações de segundos em que, sem fazermos nada por isso, a nossa memória decide dissecar fragmentos perdidos do que já fomos e, sem estarmos conscientes disso, nos mostra o caminho certo.

É irónico pensar que são sempre as alturas em que ficámos sem chão que nos revelam. Que nos mostram os nossos limites, que nos mostram a nossa força, que nos põem a nu perante nós, que achamos sempre que nos conhecemos.

No entanto, é extraordinário como, de repente, tudo muda. A realidade transforma-se, deixamos de conhecer os caminhos, as pessoas são outras, irreconhecíveis, deixamos de saber os pontos cardeais e o que ontem fazia todo o sentido, num segundo, desvanece-se numa recordação desfocada do que poderia ter sido e não foi.

Somos qualquer coisa de extraordinário entre a completa irreflexão até à máxima racionalidade. Somos seres de uma complexidade tal que, na maior parte das vezes, nos tornamos ininteligíveis para o eu que todos os dias achamos que somos.

Somos seres perdidos numa realidade situada, regida por leis minuciosas que constantemente testam a nossa capacidade de autocontrolo e de sobrevivência. Estamos condenados à liberdade de escolher o que queremos para nós, o que faz com que facilmente nos confundamos na espuma dos dias. Porque a vida, embora não pareça, é uma miscelânea de interpretações contrárias, um jogo entre o polo positivo e negativo.

É certo que, até certo ponto, somos o produto de tudo o que nos acontece, somos um composto único de tudo o que vai ficando para trás, de tudo o que já fomos. E ninguém terá, nunca, acesso a isso.

E talvez seja exatamente aqui que a vida e o mundo ganham significado. Ou não fosse nesse acumular de significações que desenhamos a nossa realidade, única e intransmissível. Uma solidão intrínseca a cada um de nós, impossível de partilhar, de explicar e de compreender. A solidão que acompanha a consciência de sabermos que somos apenas um eu no meio de uma multidão de eus que se desconhecem.

E é sempre nesta constatação da nossa não-importância, da nossa relatividade, que conseguimos voltar a centrarmo-nos em nós e naquilo que realmente nos é importante. Porque tudo o resto não são mais do que realidades desfiguradas exteriores a nós que, em algumas alturas, nos ganham.

Até que percebemos que estávamos numa rua errada com uma alma desconhecida, da qual nunca conheceremos a história completa.
E, de repente, deixámos de querer saber. O flashback acontece e faz-nos perceber que estamos na rota errada. A vida estilhaça-se como um vidro acabado de partir e, finalmente, percebemos que só nos resta aquilo que depende só de nós.

O resto será sempre algo incontrolável que, na maior parte das vezes, faz parte de outros sonhos que não os nossos.

Porque são sempre os momentos que nos deixam sem chão que nos mostram o valor exato da vida e dos corpos que, num momento, abraçaram o nosso.

TR

domingo, 26 de outubro de 2014

Corpos sem alma

Quando entrei naquele café estava desanimada com a vida. Estava sucumbida numa indefinição latente acerca do que sou. Coisa normal em mim. Quando entrei naquele café, naquela noite, estava longe de achar que te ia encontrar.
Vi-te ao longe e, de alguma forma, tive medo que te aproximasses. Como se soubesse à partida que não eras o homem da minha vida mas, ao mesmo tempo, podias ser um dos homens da minha história.
Toda a gente precisa de pessoas para existir e eu sabia, à partida, que te ia deixar entrar nesse limbo entre a necessidade e o desejo.
Também sabia que não haveria nada para além disso. Somos feitos de matérias diferentes, tu és pele e eu sou alma. E é tão fácil confundirmo-nos nas ruas deste mundo.
É tão fácil enganarmo-nos, se quisermos. 
E, naquela noite, eu queria. Enganar-me, confundir-me, divagar pelo mundo num abraço momentaneo. Porque às vezes, isso é tudo o que precisamos.
Acordar no dia seguinte sem saber muito bem onde estivemos mas com a certeza de que vivemos. 
Porque viver, muitas vezes, é apenas agarrar um momento que nos vire a vida do avesso.
Algo que nos abale as certezas, que nos crie novas dúvidas, que nos faça olhar para o mundo com os sentidos remexidos.
Quando entrei naquele café naquela noite, inconscientemente, eu queria encontrar-te.
Sabia, à partida, que seria um encontro desajustado mas, nesse momento, era tudo o que eu precisava.
O tempo passou e acho que ambos percebemos que é inevitável despedirmo-nos. 
Temos tudo o que dois corpos precisam, mas somos insuficientes enquanto almas. E quando assim é não há nada que possamos fazer para mudar o rumo do desapego.
Ficamos fartos de não conseguir chegar mais longe, de não conseguir perfurar a pele do outro. Ficamos fartos de não atingir orgasmos mentais.
E foi exactamente isso que aconteceu connosco. A espuma dos dias condenou-nos à superficialidade dos corpos o que, às vezes, é tudo o que precisamos.
E assim foi. O meu corpo encontrou a teu mas as nossas almas desencontraram-se na mesma medida. 
E nada disto é mau, nada disto cria sofrimento ou tristeza. Porque ambos sabíamos que nunca seríamos um do outro.
Nenhum de nós precisa de mais um corpo atado à vida.
Muito pelo contrário, ambos precisamos de um corpo livre para encontrar uma alma que lhe consiga tocar sem pele. 
Só assim algum encontro entre pessoas poderá durar mais que uma semana.
Porque embora hajam semanas em que tudo o que precisamos é de um corpo, uma vida não sobrevive sem outra alma.


TR