terça-feira, 3 de novembro de 2015

Slavoj Zizek – Viver no Fim dos Tempos

[Resumo do Cap. 5 Aceitação: A Causa Reconquistada; p.429-486;]

Palavras-chave: liberalismo, capitalismo, consumismo, pós-modernidade, liberdade, democracia;


Em 1968, as Estruturas saíram para a Rua:
Poderão fazê-lo outra vez?

A premissa fundamental do liberalismo é o nominalismo da verdade: a verdade é individual, o social não pode mais do que proporcionar um quadro neutro permitindo a interacção e a auto-realização dos indivíduos.
O que, com efeito, se passou após o Maio de 68 foi a emergência de um novo ‘espírito do capitalismo’: a estrutura fordista e hierárquica do processo de produção foi gradualmente abandonada e substituída por uma forma de organização baseada em redes. Em vez de uma cadeia de comando centralizada e hierárquica, passava agora a existir uma multiplicidade de participantes, organizando o trabalho em termos de equipas e de projectos.
É a própria relação entre consumismo egoísta e caridade altruísta que se torna uma relação de troca – ou seja: o pecado do consumismo (comprar um par de sapatos novos) é pago e, por isso, anulado pela ideia de que alguém que realmente necessita de calçado receberá gratuitamente um par de sapatos. O processo atinge assim o clímax: o próprio acto de participação na actividade consumista é ao mesmo tempo apresentado como participação na luta contra os males causados em última instância pelo consumismo capitalista.
A densidade semântica, o excedente da carga de significações que pesam sobre a nossa vida quotidiana, torna-se deste modo cada vez mais palpável: não podemos beber sequer uma chávena de café ou comprar um par de sapatos sem que nos lembrem que esse nosso acto é sobredeterminado pela ecologia, pela pobreza, etc.
O 11 de Setembro assinalou o fim de uma certa pós-modernidade – a que se associava aos felizes anos Clinton na década de 90 e foi a época da ironia e do politicamente correcto. A partir do 11 de Setembro manifestaram-se por toda a parte sinais anunciando o retorno das ‘grandes’ ideologias: do populismo de esquerda latino-americano às mobilizações árabes anti-ocidentais, várias novas causas emergiram.
A liberdade formal é a liberdade de escolher no interior das coordenadas das relações de poder existentes, enquanto a liberdade efectiva se desenvolve na medida em que passamos a poder transformar as próprias coordenadas das nossas escolhas.
A liberdade e a regulação não são opostas: só podemos de facto escolher livremente porque todo um quadro de regulação densa serve de apoio à nossa liberdade – porque podemos contar com a existência desta ou daquela espécie de regra ou lei para a qual apelaremos no caso de sermos atacados ou assaltados, porque podemos prever com razoável segurança um mínimo de civilidade na nossa interacção com os outros.
A conclusão a tirar é, portanto, que a liberdade de escolha só pode operar quando todo um conjunto de condições jurídicas, de educação, éticas, económicas e outras formam como que o fundo de um quadro invisível e denso que baseia o exercício da nossa liberdade.
Não basta tecermos variações em torno do motivo clássico da crítica marxista: “embora se alegue que vivemos numa sociedade de livre escolha, as escolhas que nos deixam são na realidade triviais, e a sua proliferação mascara a ausência de verdadeiras escolhas, escolhas que transformassem os traços fundamentais da nossa existência...” Embora assim seja de facto, o problema é antes o de sermos forçados a escolher sem dispor do tipo de conhecimento que nos permitiria fazer uma escolha propriamente dita – ou, mais precisamente, o que nos torna incapazes de agir não é o facto de “ainda não termos o conhecimento suficiente” mas, pelo contrário, o facto de sabermos de mais embora sem sabermos o que fazer com toda essa massa de conhecimentos inconsistentes, sem sabermos como subordiná-los a um significante-mestre.
Há já alguns anos Ulrich Beck enunciou a ideia da “sociedade de risco”, analisando a passagem da nossa atitude subjectiva fundamental do “tenho fome” ao “tenho medo”. O que gera hoje o medo é a não-transparência causal das ameaças em jogo: não tanto a transcendência das causas como a sua imanência (não sabemos em que medida estaremos nós próprios a alimentar o perigo). Nâo estamos impotentes perante algum Outro natural ou divino – tornamo-nos antes demasiado potentes, sem compreender o nosso poder. Os riscos despontam por toda a parte e nós recorremos a cientistas que os enfrentem. Mas é aí que o ponto bate: os especialistas/cientistas são os sujeitos supostos saber – mas não sabem. Embora cada vez mais dependamos de especialistas até nos domínios mais íntimos da nossa experiência (como a sexualidade e a religião), esta universalização não faz mais do que transformar o campo do saber científico num não-Todo inconsistente e antagónico. A velha divisão platónica entre pluralismo das opiniões (doxa) e a verdade científica e universal única é substituída por um mundo de “opiniões especializadas” em conflito entre elas. E, como sempre, uma universalização assim implica a auto-reflexividade: como Beck nota perspicazmente, as ameaças actuais não são principalmente exteriores (naturais), mas geradas pelas actividades humanas associadas aos avançoes científicos. Deste modo, as ciências são simultaneamente uma (das) fonte(s) de risco e o único meio de que dispomos para identificar e definir o risco, do mesmo modo que são uma (das) fonte(s) dos recursos para enfrentarmos a ameaça, para descobrirmos uma saída.
A categoria paradigmática que revela esta impotência da ciência, ao mesmo tempo que a encobre através do disfarce enganador de uma garantia especializada, é o “valor limite”: Até que ponto podemos continuar a poluir com toda a ‘segurança’ o meio ambiente? Que montantes de combustível fóssil poderemos queimar? Etc.
A verdadeira utopia é a convicção de que o sistema global hoje em vigor poderá reproduzir-se indefinidamente.
O capitalismo é a primeira ordem social e económica que destotaliza o sentido: não existe uma “visão do mundo capitalista” global, nem uma “civilização capitalista” propriamente dita – a lição fundamental da globalização é precisamente a de que o capitalismo pode adaptar-se a todas as civilizações, da cristã à hindu ou à budista, do Ocidente ao Oriente.
Hannah Arendt - A força deveria ser reservada para designar as “forças da natureza” ou a “força das circunstâncias”: indica a energia dispendida por movimentos sociais ou físicos. Nunca deveríamos torná-la equivalente do poder em termos políticos: a força refere-se a movimentos que se registam na natureza ou a outras circunstâncias humanamente incontroláveis, enquanto o poder é uma função das relações humanas. O poder nas relações sociais resulta da capacidade humana de agir concertadamente a fim de persuadir ou coagir outros, ao passo que a potência é a capacidade individual de o fazer. A autoridade é uma origem específica do poder. Representa o poder investido em certas pessoas devido aos postos que ocupam ou à sua “posição de autoridade” em questões que dizem respeito à informação e ao saber.
A autoridade não decorre, portanto, apenas dos atributos do indivíduo. O seu exercício depende da disposição voluntária por parte dos outros, como garantia de respeito e legitimidade, mais do que da capacidade pessoal de persuasão ou coacção.
É, portanto, decisivo distinguir entre poder e violência: o poder é psicológico, uma força moral que faz com que as pessoas queiram obedecer, enquanto a violência impõe a obediência através da coerção física. Os que recorrem à violência podem conseguir temporariamente impor a sua vontade, mas o seu comando é sempre ténue, porque, quando a violência se interrompe, ou a sua ameaça diminui, o incentivo para obedecer às autoridades torna-se também mais fraco. O controlo por meio da violência requer uma violência constante.
A violência é, por conseguinte, a mais pobre base possível para a instauração de um governo. (...Ver violência p.470) Quando um governo recorre à utilização da violência, é porque sente o seu poder fugir-lhe.  
Houve quem de há muito observasse que a democracia pode ser justificada a partir das atitudes opostas – a partir da confiança ou a partir de uma desconfiança radical: 1) a maioria das pessoas é, em última análise, suficientemente boa, justa e racional para tomar as decisões certas; ou 2) as pessoas são, na generalidade, tão corruptas que nunca podemos confiar o poder a algumas delas sem as manter sob constante controle.

A democracia é, portanto, transcendental, no sentido preciso do formalismo kantiano: o Grande Outro é privado da sua substância, mas sobrevive como forma vazia.

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