terça-feira, 17 de novembro de 2015

Franzen desiludiu-me, mas vou para sempre recomendá-lo como autor de Liberdade (2010) e Correcções (2001).


Título: Purity
Título original: Purity
2015, Jonathan Franzen

Jonathan Franzen nasceu em 1959, no Illinois, e vive em Nova Iorque. Foi considerado pela Granta e pelo The New York Times como um dos melhores romancistas norte-americanos com menos de quarenta anos. Poucas obras conseguiram um reconhecimento da crítica e do público tão unânime como Correcções. O seu romance Liberdade apareceu em todas as principais listas de jornais e revistas como o livro do ano. Em 2010 Franzen foi capa da revista Time - uma honra que não era concedida a um autor vivo há uma década.

Já conheço o Jonathan Franzen há alguns anos. Comecei pelo Liberdade, editado em Portugal em 2010 e fiquei rendida. Gostei tanto que, logo a seguir, li o Correcções, o primeiro romance do autor editado em 2001. Jonathan Franzen tinha em mim uma leitora assídua, até ao Purity.

Acabei hoje de ler este novo livro do "grande romancista americano" que foi capa da Time e estou desiludida. A história tinha tudo para ser vencedora mas o enredo e as personagens deixam-nos como que perdidos numa trilha desconexa. É como se o autor tivesse desistido de aprimorar os pormenores, se tivesse cansado da história e tivesse editado um rascunho de uma obra-prima. Franzen não era assim, pelo menos o que eu conhecia dele não era isto. Era cuidado e metódico nos pormenores, era simplista ao ponto de uma frase no sítio certo nos fazer parar cinco minutos para pensar. E nós, leitores, sabemos o quão raro e precioso é esse momento em que um escritor tem a capacidade para nos alhear ao ponto de questionarmos a realidade através das suas palavras. Franzen desiludiu-me, mas vou para sempre recomendá-lo como autor de Liberdade (2010) e Correcções (2001). 

Purity é uma miscelânea de actualidades que vão aparecendo de forma desconexa ao longo da narrativa. Da Alemanha de Leste de 1980 a Nova York de 2002 a história é uma desconstrução daquilo que unanimemente o Ocidente considera ser a realidade. Purity, como o nome indica, é a parte incólume que nasce num mundo conspurcado. Andreas é um homem que teve a infelicidade de nascer numa Alemanha de Leste fechada sobre si mesma, onde o mundo se media pelas palmas das mãos. Estas duas personagens constroem assim uma dialéctica que vai preencher todo o romance, ou não estivessem elas ligadas por laços invisíveis de realidades partilhadas a que, só no fim, teremos acesso. 

Deixo-vos com a que é, para mim, a melhor parte do Purity (2015), que como já disse, tinha tudo para ser uma obra-prima, mas não é.

"Os apparatchicks eram outro tipo eterno. O tom dos novos apparatchicks, nas suas palestras TED, em lançamentos de produtos com o apoio de powerpoints, em depoimentos perante parlamentos e congressos, em livros de títulos utópicos, era um xarope untuoso de convicção oportunista e capitulação pessoal de que se lembrava bem do tempo da República. Não conseguia ouvi-los sem pensar na letra dos Steely Dan So you grab a piece of something that you think is gonna last. (A rádio do setor americano tinha passado a canção vezes sem conta, para os ouvidos jovens do sector soviético.) Os privilégios disponíveis na República eram rascas, um telefone, um andar com algum ar e luz, a importantíssima autorização de viajar, mas talvez não fossem mais rascas do que ter x seguidores no Twitter, um perfil no Facebook com muitos gostos, e um ou outro anúncio de quatro minutos na NBC. O verdadeiro atractivo do apparatchick era a segurança da pertença. Cá fora, o ar cheirava a enxofre, a comida era má, a economia moribunda, o cinismo galopante, mas lá dentro a vitória sobre o inimigo de classe estava garantida. Lá dentro, o professor universitário e o engenheiro aprendiam aos pés do operário alemão. Cá fora, a classe média desaparecia mais depressa do que as calotas glaciais, xenófobos ganhavam as eleições, tribos em guerra chacinavam-se religiosamente, mas lá dentro as desconcertantes novas tecnologias tornavam obsoleta a política tradicional. Lá dentro, comunidades informais descentralizadas reescreviam as regras da criatividade e a revolução compensava quem corria riscos e percebia o poder das redes. O Novo Regime até reciclava as palavras de ordem da República, colectivo, cooperativo. O axioma de ambas era que estava a emergir uma nova espécie de humanidade. Nisto estavam de acordo os apparatchicks de todas as castas. Nunca parecia preocupá-los que as suas elites dirigentes fossem formadas pela velha espécie de humanidade brutal e gananciosa. 
Lenine fora um homem que corria riscos. Trotsky também, até Estaline fazer dele o Bill Gates da União Soviética, o cripto-reacionário banido. [...] À semelhança dos velhos politburos, o novo politburo apresenta-se como o inimigo das elites e o amigo das massas, vocacionado para dar aos consumidores aquilo que eles queriam, mas para Andreas (que, reconheça-se, nunca aprendera a desejar coisas) era como se a Internet fosse principalmente governada pelo medo: o medo da impopularidade e da reprovação, o medo de falhar, o medo do desprezo ou do esquecimento. [...]
Havia no interior do Novo Regime uma quantidade de Snowdens em potência, funcionários com acesso aos algoritmos que o Facebook usava para converter em dinheiro a privacidade dos seus utilizadores e o Twitter usava para manipular memes que alegadamente se geravam automaticamente. Mas a verdade é que as pessoas inteligentes estavam muito mais aterrorizadas com o Novo Regime do que com aquilo que o regime havia convencido as pessoas menos inteligentes a recearem, a NSA, a CIA - era uma importação directa do guião totalitário, esta coisa e uma entidade renegar os seus próprios métodos de terror imputando-os ao inimigo e apresentando-se como a única defesa contra eles - e quase todos os Snowdens em potência mantinham a boca fechada. Por duas vezes, porém, pessoas do interior do sistema haviam abordado Andreas - curiosamente ambos trabalhavam para a Google - oferecendo-lhe conteúdos de emails internos e software de algoritmos que revelavam claramente como a companhia armazenava dados pessoais dos utilizadores e filtrava ativamente informação que alegava refletir passivamente. Em ambos os casos, receando o que a Google podia fazer-lhe, Andreas tinha-se recusado a transferir os documentos. Para preservar a sua autoestima, tinha sido franco com os informadores: "Não posso fazer isso. Preciso de ter a Google do meu lado."


TR

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Outra vez terror...

E voltamos ao paradoxo do terror. Vamos aceitar que fomos atacados, retaliar e dizer-lhes que sucumbimos ao medo ao declarar guerra ou vamos continuar a fingir que não é nada connosco para não destruirmos a dignidade ocidental? E surge-me então a seguinte questão: até onde se pode tolerar a intolerância?

13-11-2015

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Nietzche, Zizek e a Ética

Em 1885 Friedrich Nietzsche deu ao mundo um novo conceito de homem, na sua obra “Assim falava Zaratustra” e chamou-lhes, a essa espécime ainda por vir, os últimos homens. Estes homens eram novos e ao mesmo tempo últimos, o que nos leva a uma bifurcação de sentido. Quando Nietzsche nos dá a explicação para que o homem reúna em si estes dois factores, somos assolados por uma sensação de impotência e de reverência perante o autor. Não nos podemos esquecer que mais de um século passou desde que Nietzsche inventou o conceito, estamos portanto sob uma luz nova para analisarmos este novo homem. O que Nietzsche não sabia e que nós sabemos é que a profecia se realizou e o mundo está, de facto, povoado de últimos homens. Nas palavras de Nietzsche, este tipo de homem assumiria a forma de uma criatura apática, sem grandes paixões nem lealdades, incapaz de sonhar e cansado da vida - alguém que não assume riscos e que se limita a procurar conforto e segurança detendo uma atitiude de tolerância mútua face ao mundo. Posto isto, é-nos impossível não ver como somos realmente os últimos homens profetizados por Nietzsche, e mesmo que tentemos negar que realmente tomamos o caminho descrito pelo filósofo, chegamos sempre a um ponto onde temos que reconhecer que os espelhos da abstração se viraram para nós, e em todos os eles, as palavras de Nietzsche fazem sentido. Não somos já capazes de ignorar o sentido que assumimos, ou melhor, a falta de sentido que protagonizamos. O tempo da denegação fetichista em que temos consciência de que sabemos, mas ao mesmo tempo não queremos saber o que sabemos e por isso optamos por não saber, está a chegar ao fim. Quando Zizek nos apresenta este gesto, a que atribui o nome de denegação fetichista, não está a falar senão dos últimos homens nietzschianos. Os homens do primeiro mundo, da actual classe média, que vivem sem consciência do que são e do que os rodeia, conhecem-se já dentro de um sistema que conduz sozinho todas as vidas que lhe são próximas, as regras estão já estipuladas sob a forma de costumes que mais não são do que meta-regras que nos dizem como aplicar as suas normas explícitas. E no entanto, seria um erro não perceber que o problema está directamente relacionado com estas ‘meta-regras’, não podemos ignorar que são exactamente elas que nos dizem o que não está ecsrito em lado nenhum, ou melhor, o que está escrito por baixo das leis escritas. O que se é-sendo, isto é, os costumes adquirem-se no uso diário de uma comunidade, são-ao-serem praticados, só a prática é que nos mostra os costumes, não podem ser lidos, só observados. E é numa luta de costumes que o mundo bifurca nos dias de hoje. Estamos em plena guerra de costumes que se traduz politicamente num choque de civilizações, que nas palavras de Walter Benjamin, se traduz num ‘choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes’.
Ora, ao tentarmos perceber como chegamos até aqui, temos que ter presente que vivemos debaixo do tecto do liberalismo, que se fundou na Europa, depois da guerra dos trinta anos, como reacção à imposição de coexistência entre pessoas com fundamentos religiosos distintos. Somos obrigados a perceber que o liberalismo nasceu da tolerância como resposta para acabar com um choque de fundamentos. A tolerância adquiriu aqui o seu ponto máximo como valor a ser respeitado, o mundo foi coberto por um céu tolerante que permitia a coexistência pacífica de olhares completamente diferentes sobre o mundo. As religiões já não podiam ser um problema de coexistência humana, era preferível ser tolerante para com os outros, diferentes de nós, do que fazer-lhes frente. Zizek mostra-nos o caminho que a visão liberal tomou, em termos filosóficos, ao demonstrar como o sujeito cartesiano fundou o liberalismo, ao afirmar: “A base filosófica desta ideologia do sujeito liberal universal é o sujeito cartesiano. (…) A experiência fundadora da posição da dúvida universal de Descartes é precisamente uma experiência ‘multicultural’ do facto de a nossa própria tradição não ser melhor do que nos parecem ser as tradições ‘excêntricas’ dos outros”. Para Kant, ao reflectirmos a partir das nossas raízes étnicas estavamos a cometer um erro grave, que se traduzia num procedimento de ‘uso privado da razão’, que se limitava a si próprio por pressupostos dogmáticos contingentes. Estas duas visões que iniciaram o liberalismo trouxeram-nos aos últimos homens formados pelo capitalismo. Embora tenhamos que assumir a importância que Kant e Descartes tiveram na nossa formação filosófica europeia, não podemos deixar de os importunar quando tratamos da questão do liberalismo, ou não tivessem sido eles a mostrar-nos o valor da tolerância para uma vida boa. O problema que advém daqui não diz respeito ao liberalismo em si, mas ao que ele criou. O triunfo da sociedade capitalista que nasceu das sementes que plantamos no solo do liberalismo é a consequência. O capitalismo por si só é um problema na medida em que não é um nome de uma civilização, é uma maneira de estar no mundo que se adapta a todas as formas de mundo. O capitalismo não tem nacionalidade, tanto é americano como asiático, não tem fronteiras no seu uso, abrange o mundo e por isso é que é global. A globalização advém daqui, do lugar que o capitalismo assumiu ao não ser de ninguém e ser de toda a gente.
Mas como viver num mundo onde o capitalismo assumiu o papel de rei quando vivemos através de pressupostos e perspectivas que não incluem a monarquia? É este o problema com que o século XXI se debate. Debaixo do céu do liberalismo os costumes são aquilo que nos distingue uns dos outros, mesmo quando vivemos em sociedades capitalistas onde reina a experiência de si próprio como ideologia. E isto é um problema na medida em que, a universalidade e a singularidade entram em combate interno dentro do eu. Somos liberalmente singulares e universalmente capitalistas. O paradoxo do século XXI desenha-se nesta frase no meu ponto de vista. Pela primeira vez, na história da humanidade o humano que habita o mundo não dispõe de uma ‘cartografia cognitiva dotada de sentido’, isto é, embora o capitalismo seja global mantém uma constelação ideológica ‘privada de sentido’ que se traduz nas palavras de Nietzsche ao descrever ‘os últimos homens’. Homens onde a apatia se instalou como marca da tolerância pelo outro, e mesmo sabendo à partida que esse outro é como um intruso para nós, é um abismo de sentido, preferimos tolera-lo do que reivindicarmos as nossas cnceções mais singulares. Só há uma de duas explicações para este facto nas palavras de Zizek: “ou tratamos o outros com condescendência e evitamos feri-lo a fim de não arruinarmos as suas ilusões ou adoptamos a atitude relativista dos múltiplos ‘regimes de verdade”.
É aqui que podemos colocar a pergunta que, no meu ponto de vista caracteriza o pensamento filosófico de Zizek quanto a esta questão: “Até onde deverá ir a tolerância pela intolerância?” – quando tentamos responder a esta pergunta somos obrigados a perceber que a nossa atitude de tolerância não é universal, é mais um dos costumes intrínsecos ao pensamento liberal europeu que se desseminou pela ocidentalidade mas que, ao mesmo tempo, deixou de fora todas as sociedades não liberais. A tolerância não é global, não é tida como valor por todos os povos nem por todas as sociedades, então porquê continuar a insistir numa atitude tolerante quando já assistimos ao terror que ela pode suscitar? É aqui que, para mim, Zizek mostra todo um novo modo de pensar relativamente a este problema. A tolerância esgotou as suas armas, esgotou a sua forma de lutar e despoletou a intolerância dos não liberais. O problema com que a Europa joga neste momento é definitivamente o problema de “ter sido a primeira e única civilização em cujo seio o ateísmo é uma opção plenamente legítima”. Como fazer sociedades religiosas fundamentalistas aceitar este facto? E como lidar com os seus fundamentalismos quando eles se apresentam sob a forma de completo massacre da dignidade individual de cada um? A tolerância não pode continuar a constituir uma resposta válida a este mecanismo de denegação fetichista. Zizek assume como ponto de partida que a tolerância está minada de limitações, na sua qualidade de concepção privilegiada subjacente à actual ideologia. O autor afirma logo no início do livro que: “Opor-se a todas as formas de violência, da violência física, directa, à violência ideológica, parece ser a preocupação maior da atitude liberal tolerante que hoje prevalece.” Esta perspectiva deixa-nos clara a constactação de que optamos por nos alienarmos do verdadeiro problema em vez de o combatermos. A nossa atitude passa por uma abstracção em relação à verdadeira causa do problema para conseguirmos continuar a viver do lado liberal do mundo.
O ponto da tese de Zizek que neste contexto vem ao de cima é a situação de violência sistémica em que vivemos e da qual não temos consciência. O facto de a violência não poder ser atribuída a indivíduos concretos e às suas más intenções é uma violência muito mais inquietante do que qualquer forma de violência social e ideológica pré-capitalista. A violência gerada através do motor capitalista é uma violência anónima onde a realidade não conta, o que conta é a situação do capital em dado momento num determinado sentido. Vivemos através de especulações capitalistas que ditam a sorte a camadas inteiras de população e que é indiferente a esse facto no seu íntimo. Esta é a cara da violência escondida do século XXI. Não apregoamos nenhuns cartazes com nenhum novo programa que torne os países sudesenvolvidos mais próximos do desenvolvimento que nós experênciamos, pelo contrário, somos os socorristas hipócritas dos países subdesenvolvidos. Concedemos auxílio e evitamos a questão fundamental, a nossa co-responsabilidade  e cumplicidade face à situação dos países subdesenvolvidos. A violência sistémica passa-se nesta dialética de capital, onde nos desculpamos com a solidariedade face à nossa existência no primeiro mundo. Nas palavras de Zizek “a beneficiência é a máscara humanitária que dessimula o rosto da exploração económica”, o que nos mostra sem romantismo, a nossa hipócrisia nos milhões que doamos às causas humanitárias, que constantemente criamos ou das quais somos diariamente alvo. Há uma violência instrínseca ao facto de ser necessário apregoar a beneficiência como uma roldana que faz o ciclo de reprodução social capitalista continuar o seu caminho. E aqui o mundo global divide-se num abismo de simbolizações inerentes às meta-regras de que são feitos os costumes. É neste ponto que o mundo se torna global e ao mesmo tempo se separa. Os necessitados de ajuda e os que necessitam de ajudar tornam-se as duas faces da mesma moeda a que chamamos globalização. Um factor decisivo do modo capitalista ter prosperado no ocidente é o facto de a cultura ocidental colocar a autonomia e a liberdade acima da solidariedade colectiva. Só neste pano de fundo liberal, onde a experiência do eu adquire a forma de ideologia, é que a abstracção quanto ao verdadeiro movimento capitalista poderia tornar-se realidade. Estamos completamente abstraídos da exploração económica de que somos agentes. É por isso que a violência não é entre ideologias nem partidos políticos, hoje a violência joga-se noutro campo, entre a singularidade de cada um e a universalidade que o mundo apregoa. As diferenças culturais tomaram o lugar das antigas guerras partidárias. Quando o liberalismo afirma que Deus morreu e o Islão decreta uma guerra em nome de Deus o mundo torna-se palco de um conflito de egos, entre o fundamentalista e o liberalista. Já somos todos capitalistas em termos económicos, mas o capitalismo, como já disse, funda-se no liberalismo, e só uma sociedade onde o liberalismo promoveu a tolerância durante tanto tempo, como a sociedade ocidental, é que consegue moldar-se ao modelo capitalista. Todas as outras sociedades, que se apanharam na rede capitalista sem terem tido noções liberalistas implantadas no seu seio, petrificam de medo perante uma globalização de crentes e não-crentes que se toleram. E aqui voltamos ao factor da violência que gerou o nome do livro de Zizek e à frase de Benjamin onde este afirma que “todo o choque de civilizações é o choque entre as barbáries que lhes estão subjacentes”, pois a situação actual do mundo não passa do choque entre a barbárie capitalista e a barbárie religiosa fundamentalista. É preciso notar que a base de todas estas barbáries se situa numa qualquer fórmula de violência. Por outro lado, o facto da ocidentalidade se opor a toda e qualquer forma de violência é um factor que decreta em si um engodo. Ao deixarmo-nos levar por um pensamento que elegeu a tolerância como valor máximo estamos a deixar-nos consumir pelo espírito enganador que move o mundo capitalista.
A tolerância já provou que não resolve o problema que lhe subjaz. Então, que mais há a fazer senão levantar o véu que cobre o verdadeiro problema e dar de caras com o medo como constituinte fundamental da nossa realidade? Temos medo do outro, temos medo de perder o nosso lugar no mundo, temos medo de deixar de controlar esse mundo, temos medo que o mundo se vire contra nós e nos condene à morte, temos medo que o medo nos assole por completo, temos medo que um colapso aconteça e leve consigo tudo o que somos, no fundo, chegamos a ter medo de ter medo. “A desintegração das barreiras simbólicas protectoras que mantinham o outro a uma distância adequada”, é, para Zizek, um dos factores que decretam o medo como sintoma das actuais sociedades. O medo de ser assediado é constitutivo da nossa sociedade liberal capitalista, é o novo medo. O medo do Outro enquanto pleno portador de subjectividade, de querer, de desejo. O outro no papel de portador daquilo que nós queremos. Zizek apresentou o melhor exemplo deste comportamento nas palavras de Lacan quando este enuncia que o problema do desejo humano é ser sempre ‘desejo do outro’ em todos os sentidos do termo: desejo pelo outro, desejo de ser desejado pelo outro, e, especialmente, desejo daquilo que o outro deseja. Há uma clara alusão a Freud neste capítulo do desejo, no que consta à injunção freudiana do gozo imposta pelo supereu. É inerente à condição humana sermos portadores de desejos. O que difere uma boa conduta de uma má neste capítulo, é a consciência de limitação que se deve impôr a si mesmo com vista a não ser levado pelos desejos que roçam a inveja como motor principal. O gozo de um desejo difere mediante o motor que nos leva a degusta-lo, quando desejamos só por desejar deixamos de tirar partido da degustação. É preciso toda uma racionalização dos desejos ao modo kantiano, como premissa universal dos direitos humanos para se conseguir dar a volta a esta questão. Nas palavras de Zizek: “A rivalidade entre os seres humanos só pode ser superada quando cada indivíduo limita os seus próprios desejos”. Não deixa de fazer sentido que este problema renasça no seio de uma sociedade liberal onde a economia é o motor, e onde a ciência é a religião. Quanto a este último ponto, é facilmente perceptível que a ciência adquiriu um estatuto de religião nos dias de hoje. Somos facilmente manipulados pelo pressuposto de que a ciência nos cura dos males que povoam o mundo em forma de bactérias e micróbios, assim como através da ciência a tecnologia nos fornece uma forma cómoda de estar no mundo. Posto isto, não nos é possível negar que adquirimos um novo modo de estar no mundo, preconizado pela fé na ciência, com traços relativamente diferentes de uma fé religiosa, mas que serve de depósito às esperanças humanas de segurança e bem estar. O último recurso de toda a violência especificamente humana é, nas palavras do autor de “Violência”, a linguagem. É através da linguagem que chegamos ao primeiro estádio da violência. A linguagem, ao permitir-nos ter um mundo conceptualizado por símbolos, atribui-nos modos de estar nesse mesmo mundo, completamente diferentes. A linguagem é o primeiro factor de divisão entre os homens, é através da linguagem que “podemos viver em mundos diferentes ainda que moremos na mesma rua”. Zizek atribui à linguagem um poder fundamental na medida em que torna claro que é através dela que nos relacionamos com o Outro e é também através dela que o Outro se torna um abismo para nós. Estamos mais uma vez face a um paradoxo da condição humana que não tem em vista uma resolução fácil nem prevista. Está inerentemente ligado a nós, humanos a nossa condição de ser-no-mundo. Resta-nos então perceber que não basta estar, ou que por si só existir é estar, pelo contrário, existir na sociedade actual é não estar presente, é ser ausente, despojado de vida, alguém que se limita a assistir a uma peça de teatro num camarote qualquer do mundo. Precisamos de voltar a perceber que viver implica conhecer aquilo que está por detrás dos nossos pressupostos tidos como certos. Em última análise, precisamos de voltar a elogiar “o discurso do método” cartesiano para voltarmos a saber pensar.

Não será de todo por acaso que Zizek acaba o epílogo de “Violência” com uma frase que eu não consigo deixar de citar: “Por vezes, não fazer nada  é a coisa mais violenta que temos a fazer”. E, perante isto, só há uma coisa a fazer pela nossa actual situação: “derrubarmos o verdadeiro mundo social e económico e transformar as sociedades de maneira a que as pessoas deixem de tentar desesperadamente fugir do seu próprio mundo”.


                                                                             Teresa Rolla

Uma concepção estética do mundo, a partir de Cortázar



Quem somos? De onde vimos? Para onde vamos? O que é o homem? O que sou eu? Estas são as principais perguntas feitas ao longo de todos os tempos, por todos os homens. É a partir deste questionamento inato que nós, seres humanos, nos projectamos e nos alistamos face ao mundo. É a partir destas perguntas que criamos um mundo, só nosso, onde tentamos consecutivamente arranjar respostas. Alguém conseguiu até hoje? Não, até hoje ninguém foi capaz de responder inteiramente a nenhuma destas questões. No entanto, não é por isso que deixamos de as formular.
Somos ‘seres-no-mundo’, seres inscritos num universo do qual não podemos fugir. Somos automaticamente entregues ao mundo desde que existimos e precisamos de aprender a viver nele. Todos tentamos executar essa tarefa da melhor maneira, todos procuramos essa fórmula secreta, a autenticidade desmedida, que talvez ninguém tenha ainda encontrado, mas que não deixa de existir nas consciências humanas como objectivo a alcançar. E é exactamente na procura das respostas que nos entregamos ao subjectivo e onde apreendemos o mundo na sua forma mais pura. Mas, para isso, precisamos de nos despir de todas as regras e convenções estipuladas de forma a conseguirmos construir um mundo que nos revele o que somos ou quem somos. 
Mas que mundo é esse? É exactamente aquele onde diariamente damos passos, onde constantemente somos surpreendidos, onde construímos sentimentos, criamos relações, onde somos assaltados por sensações e onde por vezes caímos na mais pura angústia sem razão definida. E tudo isto é sentido em primeira pessoa dentro de um corpo que é atravessado pelo mundo ao mesmo tempo que o atravessa.
E é esse corpo que experimenta o mundo e que vai arranjando formas de dar forma ao mundo. O Homem tentou desde sempre construir fórmulas que o ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si próprio. E foi através da Arte que conseguiu a melhor expressão subjectiva de si mesmo.
A Arte possibilitou aos homens inscreverem-se no mundo através das sensações que o mundo lhes faculta. A Arte é a sensação inscrita sob uma forma que o artista escolhe para evidenciar emoções e sentimentos. E este processo é o chamado fenómeno estético onde os homens se despem e se expõem numa intimidade incontornável. Mas nem sempre foi assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida em conta, a Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível. Muitos séculos foram necessários para que o homem se pudesse expor, livre de regras e de preconceitos. Na antiguidade a beleza era um a priori antes de qualquer relação sujeito-objecto. A única beleza válida era a beleza ordenada no universo, que seguia regras estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria eram conceitos obrigatórios a seguir na construção de qualquer obra de arte. O Homem não possuía a liberdade de expressão que hoje é concedida à Arte, no pensamento clássico o belo e a arte são algo de supra-sensível, independentes da percepção subjectiva. Só no século XVIII é que se começa a exercer o princípio da subjectividade e da relatividade, o belo e a arte passam a depender do sujeito e das transformações ocorridas dentro desse mesmo sujeito.
O século XVIII é composto por uma dualidade entre o eixo da razão e o eixo do sensível, há a emancipação de uma razão antropológica e uma emancipação dos sentidos. É nesta altura que se começa a dar relevo ao efeito emocional das obras de arte. O efeito catarse é o apelo da arte à emocionalidade dos receptores e o próprio autor da obra está contido nesse efeito. A arte torna-se então uma expressão subjectiva e a estética torna-se uma epistemologia da sensibilidade.
É neste contexto, relativamente próximo, que me inscrevo como receptora de emoções artísticas. E relativamente à literatura como arte, seleccionei um capítulo da obra: “O Jogo do Mundo”, para expor o meu ensaio sobre o Gosto.
Cortázar, no capítulo 73, constrói, sob o meu ponto de vista, uma estética literária que consegue percorrer o belo, o feio, o sublime e o grotesco. Ao ler Cortázar sinto-me atingida por uma força invisível que me denuncia emocionalmente. Sinto-me atingida pela obra, pelas personagens, sinto-me exposta nas descrições e nos sentimentos enunciados, sinto que o meu mundo é assaltado pelas palavras.
E não será exactamente este o efeito esperado de uma obra de arte? Não será perto deste ponto que se desenha o sublime? A grandeza emocional que não cabe em si própria, que tem necessidade de explodir, e pela qual somos atingidos num abraço de sentimentos partilhados.
“Sim, mas quem é que nos vai curar do fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de la Huchette, que sai pelos portais carcomidos, dos corredores estreitos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e se anicha nos vãos das portas, como é que vamos fazer para nos lavarmos da sua doce queimadura que continua sempre, que se instala para durar, aliada ao tempo e à memória, às substâncias pegajosas que nos mantêm deste lado, que nos queimam docemente até nos calcinar.”
É o sublime, de mãos dadas com o grotesco, que nos provoca a sensação de profundidade emocional onde somos atacados e arrastados numa experiência que não proveio de nós mas que se torna nossa no experimentar de sentimentos. E é o Gosto na sua faculdade de microscópio do juízo que nos provoca diferentes disposições afectivas face à obra de arte. 
São estas disposições afectivas que permitem ao humano a criação como procura, em forma de interrogação, sobre o sentido de se ser. Todos temos a certeza de uma finitude, a certeza de um nascer e de uma morte e existem muitos seres que, através do gesto de criação, procuram mergulhar no infinito através da própria finitude. Quando pensamos, quando transfiguramos a nossa vida num objecto de arte, há sempre uma ‘reinvenção de mim’ presente nessa obra. O sensível e o inteligível que se convocam, que se invocam e se convulsionam. Somos um corpo que se lança constantemente contra o mundo em busca de si próprio.
Há uma continua interrogação, presente em nós, que nos permite reinventar o mundo, e é aí, nesse lugar, que acontece a origem do gesto de criação, um movimento de um arquivo infinito de batimentos de um coração, que acrescentam mundo ao mundo.
A criação procura sempre algo, transforma a necessidade de nos encontrarmos em beleza e a beleza torna-se então necessária. Mas na origem dessa beleza está sempre a ferida, uma ferida aberta que os Homens conservam em si nesta passagem pela finitude da vida, e a ferida é exactamente essa finitude não explicada que se invoca em cada obra de arte, em cada pensamento artístico, em cada gesto de criação. Gestos que são ‘gestos-palavra’, gestos que dizem metaforicamente o mundo.
Somos um corpo que respira o mundo, o pensamento, a arte e a vida são a mesma matéria, a mesma substância. Somos atravessados por todos os sentidos e significações do mundo. Somos um ser que se joga a si mesmo a partir, e desde dentro do seu próprio corpo. A recuperação do corpo como elemento fulcral do modo como somos e existimos, através da Arte. Passamos a ver a ética como estética da existência, a liberdade e o respirar o desequilíbrio infinito dessa liberdade em todas as possibilidades de ser. A fractura com os esquemas organizativos do mundo é a possibilidade que a Arte nos dá.
“A arder assim, sem trégua, a suportar a queimadura central que avança como a maturação no fruto, ser a vibração de uma fogueira nesta sequência infinita de pedras, vaguear pelas noites da nossa vida com a obediência do sangue no circuito cego.”
Há um tempo indefinido e sem forma que atravessa a arte, e não é possível arranjar-se uma lógica argumentativa para definir este tempo. Há o confronto com uma outra forma de tempo numa obra de arte, o tempo que a obra de arte nos faz sentir, viver, inscrever. E é aqui que acontece a emergência de uma instância poética, o algo que nos atravessa e que cria uma ressonância indefinida de sentido que é conhecimento. A criação em forma de interrogação – o humano em constante busca de sentido.
“A nossa verdade possível tem que ser invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza tura das turas.”
Há um excesso em nós, que o nosso coração não consegue conter e tem que expulsar, exactamente como uma voz que não conseguimos expressar mas que vive em nós, vivemos numa constante luta abissal connosco mesmos. A intensidade de um abismo constante onde caminhamos continuamente, que nos impele a sermos aquilo que não sabemos que somos. Temos em nós a força selvagem das emoções em estado bruto e temos que a canalizar de alguma forma. A nossa imponderabilidade, a nossa instabilidade, a nossa inquietação que se canaliza em obras de Arte onde o gesto criativo se apodera de nós e nos permite a reinvenção do mundo. Cada obra é uma densidade existencial, há algo que permanece e algo que escapa continuamente, um resto de sentido que nos persegue e que não tem lógica argumentativa. O dar a ser o inexprimível no próprio inexprimível.
“Talvez o erro estivesse em aceitar que esse objecto fosse um parafuso só porque tinha a forma de um parafuso. Picasso pega num carrinho de brinquedo e transforma-o em queixo de cinocéfalo. Podia ser que o italiano fosse um idiota, mas também podia ser que ele fosse um construtor do mundo. Do parafuso a um olho, de um olho a uma estrela... Entregar-se ao Grande Hábito para quê? Pode escolher-se a tura, a invenção, isto é, o parafuso ou o carrinho de brinquedo.”
O contacto com o mundo que a arte nos permite e nos dá, é um contacto matricial, como se alguns sentidos ou gestos fossem o início de tudo, como se nesses gestos tudo estivesse em tudo, como habitar o espelho e a fractura do que somos. É o acumular da vida de uma forma completamente diferente, sem perda de nenhuma das suas capacidades ou memórias. Nós somos afectados por sensações que vêm do exterior, estas sensações são caóticas e desorganizadas, mas ao colocarmos estas sensações dispersas, no espaço e no tempo, tornam-se automaticamente percepções. O nosso juízo de gosto está intimamente ligado a estas percepções, e é ao sentir-se afectado por elas que o Homem forma o seu juízo reflexivo. A partir do momento em que aceitamos reflectir encontramos em nós mesmos um sentimento íntimo que torna impossível demonstrar a validade dos nossos juízos. É aqui que nasce a subjectividade, que nos permite a nossa própria reinvenção, a nossa forma de conhecimento a partir da experiência já vivida que se faz presente e guarda em si a intensidade desse gesto, o instante em que marco a minha mão na matéria do mundo.
“É assim que Paris nos destrói devagar, deliciosamente, triturando-nos por entre flores velhas e toalhas de papel manchadas de vinho, com o seu fogo sem cor que corre ao anoitecer, saindo dos portais carcomidos.”
É desta forma que se instaura entre o sujeito e o objecto uma relação estética, acompanhada por um sentimento de prazer, de reconhecimento, uma medida partilhada, uma tonificação de sentimentos co-sentidos.
Alexandre Baumgarten funda o conceito de estética em 1750 e atribui-lhe a seguinte descrição: “a presença de certos objectos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos e ao espírito”. A partir daqui começou a existir uma actividade humana que tinha como finalidade a produção deste tipo de ‘objectos’ específicos da experiência estética. Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis. Assistimos a uma busca propositada de categorias aparentemente extra-estéticas como o horrível e o grotesco, que põem em causa o acerto de que a arte se oriente para a produção da beleza, do prazer e do bom gosto. O sentimento do belo vai-se alargando a outras categorias afectivas, o efeito estético evolui para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos passam a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o grotesco, o sublime... A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de comunicação e a dimensão passional passa a ser a protagonista. A estética passa a ser encarada como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. A estética do sublime passa a ser encarada como uma estética da força, que visa o êxtase, que visa transportar o leitor para uma sensação do absolutamente grande, o que nos esmaga. A estética como uma poética da percepção.
“Arde em nós um fogo inventado, uma tura incandescente, um artifício da espécie, uma cidade que é o Grande Parafuso, a agulha horrível com o seu olho nocturno por onde corre o fio do Sena, máquina de torturas, agonia numa jaula repleta de andorinhas furiosas. Ardemos na nossa obra, fabulosa honra mortal, alto desafio de Fénix.”
Somos seres humanos que não conseguem delinear as linhas obscuras do seu próprio rosto, vivemos numa incessante mobilidade do mundo, numa situação intimamente conflituosa e perguntamo-nos continuamente sobre como habitar este conflito. Esta tarefa, ligada à actividade especulativa do ser, cria um novo espaço filosófico que enfrenta a fragmentaridade humana. Entramos assim, num pensamento que se afirma, ele mesmo, um texto em aberto. O pensar o pensamento como um movimento infinito de reconfiguração do próprio corpo. A beleza passa a ser um conceito intemporal configurado através das experiências humanas e da sua subjectividade. Há uma transição das experiências humanas para além do instante em que ocorrem, é um movimento de representação por símbolos que traduzem sentido e a que damos o nome de Arte. Cada símbolo pressupõe uma representação e os símbolos estéticos, alem da função comunicativa, adquirem significações outras. Os símbolos estéticos têm como uma das principais funções fazer perdurar a experiência, são representações imutáveis da realidade. Não há uma predeterminação normativa na estética, é uma fonte que está intrinsecamente ligada ao desenrolar da experiência.
A estética é um tipo de conhecimento que bate à porta de todas as qualidades sensíveis dos humanos e que está relacionado com a capacidade inteligível do homem. O insondável abismo do que somos e o insondável abismo que o mundo é.
“Ninguém nos curará do fogo surdo, o fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de Hachette. Incuráveis, absolutamente incuráveis, escolhemos o Grande Parafuso como tura, inclinamo-nos sobre ele, entramos nele, voltamos a inventá-lo a cada dia que passa, a cada mancha de vinho na toalha, a cada beijo do mofo nas madrugadas da Cour de Rohan, inventamos o nosso incêndio, ardemos de dentro para fora, talvez seja essa a escolha, talvez as palavras envolvam essa escolha como guardanapos envolvem o pão e o sabor permaneça no interior, a farinha que se estica, o sim sem o não, o não sem o sim, o dia sem Manes, sem Ormuz ou Arimán, de uma vez por todas e em paz e chega.”
A estética vem legitimar o conhecimento sensível, os objectos transformam-se em sensações. Os sentidos, introduzem na mente várias percepções distintas das coisas, ideias subjectivas que não são as qualidades das próprias coisas, são ideias de percepção, de raciocinar, de pensar, de querer.
A estética, do ponto de vista filosófico, ao apontar-se como disciplina, procura salientar-se que ela participa de uma visão global do ser. Considera-se que a beleza, a arte e a experiência estética, são dimensões fundamentais de qualquer análise filosófica que verse a existência.
A nossa vida assemelha-se a uma viagem. Quando viajamos procuramos conhecer. Conhecer o rosto que é indefinido, de nós mesmos. Há uma diluição da nossa identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo conhecimento que desencadeia a viagem, é a curiosidade atormentada, um conhecimento que nos escapa continuamente, um saber amargo que se alcança, o horror de enfrentarmos a nossa imagem em diluição. Por mais que percorramos esta viagem vamos sempre notar a presença de uma ausência, a busca atormentada da nossa própria imagem, a reconfiguração de si, criar, ser, pensar, como viver na impossibilidade de definir definitivamente a configuração do sentido que indicia o humano?
Uma hemorragia de sentidos, pensados desde o interior, que se nos revelam sob a forma de obras de arte, onde nos revemos.



Bibliografia:

Cortázar, Júlio, O Jogo do Mundo, Lisboa, Cavalo de Ferro editores, 2008


Teresa Rolla

Os Direitos Humanos são valores morais?


"Voltaire disse: os chineses são iguais a nós, têm paixões, choram. E. Herbart disse: entre uma cultura e outra não há comunicação, os seres são diferentes. Os dois tinham razão."
(Edgar Morin)


Vivemos naquilo a que se poderia chamar o 'lado ocidental da sociedade', vivemos segundo uma ética criada pela ocidentalidade, onde já nascemos inscritos, e onde aprendemos a sobreviver perante determinadas regras sociais que no nosso ponto de vista 'ocidental' fazem todo o sentido. Mas perante este cenário somos obrigados a pensar: onde está o resto do mundo, onde ficam todos os outros lados não-ocidentais que, como nós, vivem no dia-a-dia da realidade?
É a partir desta noção de que somos ocidentais mas não somos a totalidade, que me propus pensar os direitos humanos. Como sabemos, eles foram criados no ocidente e assumem exactamente esse mecanismo de pensamento. E aqui chega a hora de reflectir que parte do mundo o ocidente ocupa. A minha resposta, a resposta do eu que eu sou e que nasceu e viveu desde sempre no mundo ocidental seria: o ocidente ocupa o mundo inteiro. Mas exactamente por isso, exactamente por estar inscrita na Europa e fazer parte deste lado do mundo, sou obrigada a reflectir que para lá de mim existem continentes onde a ocidentalidade não faz sentido, ou se faz, ela viola características intrínsecas de povos que não se querem mudar, que não se querem ocidentalizar e que não querem ver pelas mesmas lentes que o ocidente vê. Posto isto, é facilmente verificável que vivemos numa autêntica dialéctica a nível mundial. Não somos inteiros ainda. Somos partes que se interligam e que na melhor das hipóteses se dão bem. É nesta urgência de diálogo entre o mundo inteiro que me parece indispensável a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Afinal, como o próprio nome indica, nascendo na Indonésia ou nascendo em Inglaterra, somos todos humanos. E esta é a primeira premissa universal da moralidade. Os direitos humanos são, então, valores morais em si mesmos e, necessitam com urgência, que se entendam por esse prisma em qualquer parte do mundo. A nossa faceta Humana é aquilo que nos une uns aos outros e, embora possa assumir exactamente o seu oposto, é a nossa missão não deixar que isso aconteça. É exactamente neste ponto que Kant mostra toda a sua magnificência ao criar o 'imperativo categórico' - "imperativo porque nos surge como uma ordem e categórico porque se nos aplica incondicionalmente". Com este imperativo Kant aniquila qualquer diferença entre o ocidente e o oriente e cria uma universalidade implícita na palavra Humano. A premissa, "age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal", é exactamente o ponto onde convergem as várias nacionalidades e onde se atribui a cada uma o mesmo poder e a mesma liberdade. Esta liberdade, porém, visa um aspecto impossível de alienar, o nosso pensamento universal, a nossa predisposição para o outro e para a incapacidade de viver sem ele. Nascemos seres sociais e continuamos a sê-lo durante toda a nossa existência, enquanto fazendo parte de uma sociedade e enquanto humanos que a habitam. Percebendo este ponto universal, percebemos que é urgente uma moralidade global onde sejamos tidos como iguais perante a mesma liberdade. A liberdade inscrita no humano que somos e na universalidade que é o mundo. Resta-nos então aplicar no dia-a-dia o Imperativo Categórico e assumir a Declaração Universal dos Direitos Humanos como um livro de cabeceira, tanto na ocidentalidade como em todo o mundo, pois, só assim, olharemos uns para os sobre a mesma base e perceberemos nesse olhar o quão iguais, e o quão diferentes, os nossos olhos são. A diferença não aniquila a moralidade, pelo contrário, a diferença, no meu ponto de vista, é a impulsionadora da possibilidade um olhar comum.



                                                                                                                                   Teresa Rolla