Quem somos? De onde vimos? Para onde
vamos? O que é o homem? O que sou eu? Estas são as principais perguntas feitas
ao longo de todos os tempos, por todos os homens. É a partir deste
questionamento inato que nós, seres humanos, nos projectamos e nos alistamos
face ao mundo. É a partir destas perguntas que criamos um mundo, só nosso, onde
tentamos consecutivamente arranjar respostas. Alguém conseguiu até hoje? Não,
até hoje ninguém foi capaz de responder inteiramente a nenhuma destas questões.
No entanto, não é por isso que deixamos de as formular.
Somos ‘seres-no-mundo’, seres inscritos
num universo do qual não podemos fugir. Somos automaticamente entregues ao
mundo desde que existimos e precisamos de aprender a viver nele. Todos tentamos
executar essa tarefa da melhor maneira, todos procuramos essa fórmula secreta,
a autenticidade desmedida, que talvez ninguém tenha ainda encontrado, mas que
não deixa de existir nas consciências humanas como objectivo a alcançar. E é
exactamente na procura das respostas que nos entregamos ao subjectivo e onde
apreendemos o mundo na sua forma mais pura. Mas, para isso, precisamos de nos
despir de todas as regras e convenções estipuladas de forma a conseguirmos
construir um mundo que nos revele o que somos ou quem somos.
Mas que mundo é esse? É exactamente
aquele onde diariamente damos passos, onde constantemente somos surpreendidos,
onde construímos sentimentos, criamos relações, onde somos assaltados por
sensações e onde por vezes caímos na mais pura angústia sem razão definida. E
tudo isto é sentido em primeira pessoa dentro de um corpo que é atravessado pelo
mundo ao mesmo tempo que o atravessa.
E é esse corpo que experimenta o mundo e
que vai arranjando formas de dar forma ao mundo. O Homem tentou desde sempre
construir fórmulas que o ajudassem a compreender-se e a explicar-se a si
próprio. E foi através da Arte que conseguiu a melhor expressão subjectiva de
si mesmo.
A Arte possibilitou aos homens
inscreverem-se no mundo através das sensações que o mundo lhes faculta. A Arte
é a sensação inscrita sob uma forma que o artista escolhe para evidenciar
emoções e sentimentos. E este processo é o chamado fenómeno estético onde os
homens se despem e se expõem numa intimidade incontornável. Mas nem sempre foi
assim, a Arte nem sempre foi livre e a experiência estética nem sempre foi tida
em conta, a Arte nem sempre pertenceu ao âmbito do conhecimento sensível.
Muitos séculos foram necessários para que o homem se pudesse expor, livre de
regras e de preconceitos. Na antiguidade a beleza era um a priori antes de
qualquer relação sujeito-objecto. A única beleza válida era a beleza ordenada
no universo, que seguia regras estritas, onde a ordem, a harmonia e a simetria
eram conceitos obrigatórios a seguir na construção de qualquer obra de arte. O
Homem não possuía a liberdade de expressão que hoje é concedida à Arte, no pensamento
clássico o belo e a arte são algo de supra-sensível, independentes da percepção
subjectiva. Só no século XVIII é que se começa a exercer o princípio da
subjectividade e da relatividade, o belo e a arte passam a depender do sujeito
e das transformações ocorridas dentro desse mesmo sujeito.
O século XVIII é composto por uma
dualidade entre o eixo da razão e o eixo do sensível, há a emancipação de uma
razão antropológica e uma emancipação dos sentidos. É nesta altura que se
começa a dar relevo ao efeito emocional das obras de arte. O efeito catarse é o
apelo da arte à emocionalidade dos receptores e o próprio autor da obra está
contido nesse efeito. A arte torna-se então uma expressão subjectiva e a
estética torna-se uma epistemologia da sensibilidade.
É neste contexto, relativamente próximo,
que me inscrevo como receptora de emoções artísticas. E relativamente à
literatura como arte, seleccionei um capítulo da obra: “O Jogo do Mundo”, para
expor o meu ensaio sobre o Gosto.
Cortázar, no capítulo 73, constrói, sob
o meu ponto de vista, uma estética literária que consegue percorrer o belo, o
feio, o sublime e o grotesco. Ao ler Cortázar sinto-me atingida por uma força
invisível que me denuncia emocionalmente. Sinto-me atingida pela obra, pelas
personagens, sinto-me exposta nas descrições e nos sentimentos enunciados,
sinto que o meu mundo é assaltado pelas palavras.
E não será exactamente este o efeito
esperado de uma obra de arte? Não será perto deste ponto que se desenha o
sublime? A grandeza emocional que não cabe em si própria, que tem necessidade
de explodir, e pela qual somos atingidos num abraço de sentimentos partilhados.
“Sim, mas quem é que nos vai curar do
fogo surdo, do fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de la Huchette, que
sai pelos portais carcomidos, dos corredores estreitos, do fogo sem imagem que
lambe as pedras e se anicha nos vãos das portas, como é que vamos fazer para
nos lavarmos da sua doce queimadura que continua sempre, que se instala para
durar, aliada ao tempo e à memória, às substâncias pegajosas que nos mantêm
deste lado, que nos queimam docemente até nos calcinar.”
É o sublime, de mãos dadas com o
grotesco, que nos provoca a sensação de profundidade emocional onde somos
atacados e arrastados numa experiência que não proveio de nós mas que se torna
nossa no experimentar de sentimentos. E é o Gosto na sua faculdade de
microscópio do juízo que nos provoca diferentes disposições afectivas face à
obra de arte.
São estas disposições afectivas que
permitem ao humano a criação como procura, em forma de interrogação, sobre o
sentido de se ser. Todos temos a certeza de uma finitude, a certeza de um
nascer e de uma morte e existem muitos seres que, através do gesto de criação,
procuram mergulhar no infinito através da própria finitude. Quando pensamos,
quando transfiguramos a nossa vida num objecto de arte, há sempre uma
‘reinvenção de mim’ presente nessa obra. O sensível e o inteligível que se
convocam, que se invocam e se convulsionam. Somos um corpo que se lança
constantemente contra o mundo em busca de si próprio.
Há uma continua interrogação, presente
em nós, que nos permite reinventar o mundo, e é aí, nesse lugar, que acontece a
origem do gesto de criação, um movimento de um arquivo infinito de batimentos
de um coração, que acrescentam mundo ao mundo.
A criação procura sempre algo,
transforma a necessidade de nos encontrarmos em beleza e a beleza torna-se
então necessária. Mas na origem dessa beleza está sempre a ferida, uma ferida
aberta que os Homens conservam em si nesta passagem pela finitude da vida, e a
ferida é exactamente essa finitude não explicada que se invoca em cada obra de
arte, em cada pensamento artístico, em cada gesto de criação. Gestos que são
‘gestos-palavra’, gestos que dizem metaforicamente o mundo.
Somos um corpo que respira o mundo, o
pensamento, a arte e a vida são a mesma matéria, a mesma substância. Somos
atravessados por todos os sentidos e significações do mundo. Somos um ser que
se joga a si mesmo a partir, e desde dentro do seu próprio corpo. A recuperação
do corpo como elemento fulcral do modo como somos e existimos, através da Arte.
Passamos a ver a ética como estética da existência, a liberdade e o respirar o
desequilíbrio infinito dessa liberdade em todas as possibilidades de ser. A
fractura com os esquemas organizativos do mundo é a possibilidade que a Arte
nos dá.
“A arder assim, sem trégua, a suportar a
queimadura central que avança como a maturação no fruto, ser a vibração de uma
fogueira nesta sequência infinita de pedras, vaguear pelas noites da nossa vida
com a obediência do sangue no circuito cego.”
Há um tempo indefinido e sem forma que
atravessa a arte, e não é possível arranjar-se uma lógica argumentativa para
definir este tempo. Há o confronto com uma outra forma de tempo numa obra de
arte, o tempo que a obra de arte nos faz sentir, viver, inscrever. E é aqui que
acontece a emergência de uma instância poética, o algo que nos atravessa e que
cria uma ressonância indefinida de sentido que é conhecimento. A criação em
forma de interrogação – o humano em constante busca de sentido.
“A nossa verdade possível tem que ser
invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura,
piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma
tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza tura das turas.”
Há um excesso em nós, que o nosso
coração não consegue conter e tem que expulsar, exactamente como uma voz que
não conseguimos expressar mas que vive em nós, vivemos numa constante luta
abissal connosco mesmos. A intensidade de um abismo constante onde caminhamos
continuamente, que nos impele a sermos aquilo que não sabemos que somos. Temos
em nós a força selvagem das emoções em estado bruto e temos que a canalizar de
alguma forma. A nossa imponderabilidade, a nossa instabilidade, a nossa
inquietação que se canaliza em obras de Arte onde o gesto criativo se apodera
de nós e nos permite a reinvenção do mundo. Cada obra é uma densidade
existencial, há algo que permanece e algo que escapa continuamente, um resto de
sentido que nos persegue e que não tem lógica argumentativa. O dar a ser o
inexprimível no próprio inexprimível.
“Talvez o erro estivesse em aceitar que
esse objecto fosse um parafuso só porque tinha a forma de um parafuso. Picasso
pega num carrinho de brinquedo e transforma-o em queixo de cinocéfalo. Podia
ser que o italiano fosse um idiota, mas também podia ser que ele fosse um
construtor do mundo. Do parafuso a um olho, de um olho a uma estrela...
Entregar-se ao Grande Hábito para quê? Pode escolher-se a tura, a invenção,
isto é, o parafuso ou o carrinho de brinquedo.”
O contacto com o mundo que a arte nos
permite e nos dá, é um contacto matricial, como se alguns sentidos ou gestos
fossem o início de tudo, como se nesses gestos tudo estivesse em tudo, como
habitar o espelho e a fractura do que somos. É o acumular da vida de uma forma
completamente diferente, sem perda de nenhuma das suas capacidades ou memórias.
Nós somos afectados por sensações que vêm do exterior, estas sensações são
caóticas e desorganizadas, mas ao colocarmos estas sensações dispersas, no
espaço e no tempo, tornam-se automaticamente percepções. O nosso juízo de gosto
está intimamente ligado a estas percepções, e é ao sentir-se afectado por elas
que o Homem forma o seu juízo reflexivo. A partir do momento em que aceitamos
reflectir encontramos em nós mesmos um sentimento íntimo que torna impossível
demonstrar a validade dos nossos juízos. É aqui que nasce a subjectividade, que
nos permite a nossa própria reinvenção, a nossa forma de conhecimento a partir
da experiência já vivida que se faz presente e guarda em si a intensidade desse
gesto, o instante em que marco a minha mão na matéria do mundo.
“É assim que Paris nos destrói devagar,
deliciosamente, triturando-nos por entre flores velhas e toalhas de papel
manchadas de vinho, com o seu fogo sem cor que corre ao anoitecer, saindo dos
portais carcomidos.”
É desta forma que se instaura entre o
sujeito e o objecto uma relação estética, acompanhada por um sentimento de
prazer, de reconhecimento, uma medida partilhada, uma tonificação de
sentimentos co-sentidos.
Alexandre Baumgarten funda o conceito de
estética em 1750 e atribui-lhe a seguinte descrição: “a presença de certos
objectos melhor dotados, bem organizados nas suas formas, capazes de se
dirigirem simultaneamente a todas as faculdades internas do homem, aos sentidos
e ao espírito”. A partir daqui começou a existir uma actividade humana que
tinha como finalidade a produção deste tipo de ‘objectos’ específicos da
experiência estética. Hoje, somos afectados por uma profunda mutação da
cultura, na qual os padrões clássicos se tornam quase irreconhecíveis.
Assistimos a uma busca propositada de categorias aparentemente extra-estéticas
como o horrível e o grotesco, que põem em causa o acerto de que a arte se
oriente para a produção da beleza, do prazer e do bom gosto. O sentimento do
belo vai-se alargando a outras categorias afectivas, o efeito estético evolui
para um pluralismo, a sensibilidade e o gosto, enquanto sentimentos estéticos passam
a referir-se a uma série de disposições afectivas como o feio, o grotesco, o
sublime... A Arte passa a ser entendida como um fenómeno de comunicação e a
dimensão passional passa a ser a protagonista. A estética passa a ser encarada
como a faculdade de sentir, a ciência da sensibilidade. A estética do sublime
passa a ser encarada como uma estética da força, que visa o êxtase, que visa
transportar o leitor para uma sensação do absolutamente grande, o que nos
esmaga. A estética como uma poética da percepção.
“Arde em nós um fogo inventado, uma tura
incandescente, um artifício da espécie, uma cidade que é o Grande Parafuso, a
agulha horrível com o seu olho nocturno por onde corre o fio do Sena, máquina
de torturas, agonia numa jaula repleta de andorinhas furiosas. Ardemos na nossa
obra, fabulosa honra mortal, alto desafio de Fénix.”
Somos seres humanos que não conseguem
delinear as linhas obscuras do seu próprio rosto, vivemos numa incessante
mobilidade do mundo, numa situação intimamente conflituosa e perguntamo-nos
continuamente sobre como habitar este conflito. Esta tarefa, ligada à
actividade especulativa do ser, cria um novo espaço filosófico que enfrenta a
fragmentaridade humana. Entramos assim, num pensamento que se afirma, ele
mesmo, um texto em aberto. O pensar o pensamento como um movimento infinito de
reconfiguração do próprio corpo. A beleza passa a ser um conceito intemporal
configurado através das experiências humanas e da sua subjectividade. Há uma
transição das experiências humanas para além do instante em que ocorrem, é um
movimento de representação por símbolos que traduzem sentido e a que damos o
nome de Arte. Cada símbolo pressupõe uma representação e os símbolos estéticos,
alem da função comunicativa, adquirem significações outras. Os símbolos
estéticos têm como uma das principais funções fazer perdurar a experiência, são
representações imutáveis da realidade. Não há uma predeterminação normativa na
estética, é uma fonte que está intrinsecamente ligada ao desenrolar da
experiência.
A estética é um tipo de conhecimento que
bate à porta de todas as qualidades sensíveis dos humanos e que está
relacionado com a capacidade inteligível do homem. O insondável abismo do que
somos e o insondável abismo que o mundo é.
“Ninguém nos curará do fogo surdo, o
fogo sem cor que corre ao anoitecer pela rue de Hachette. Incuráveis,
absolutamente incuráveis, escolhemos o Grande Parafuso como tura, inclinamo-nos
sobre ele, entramos nele, voltamos a inventá-lo a cada dia que passa, a cada
mancha de vinho na toalha, a cada beijo do mofo nas madrugadas da Cour de
Rohan, inventamos o nosso incêndio, ardemos de dentro para fora, talvez seja
essa a escolha, talvez as palavras envolvam essa escolha como guardanapos
envolvem o pão e o sabor permaneça no interior, a farinha que se estica, o sim
sem o não, o não sem o sim, o dia sem Manes, sem Ormuz ou Arimán, de uma vez
por todas e em paz e chega.”
A estética vem legitimar o conhecimento
sensível, os objectos transformam-se em sensações. Os sentidos, introduzem na
mente várias percepções distintas das coisas, ideias subjectivas que não são as
qualidades das próprias coisas, são ideias de percepção, de raciocinar, de
pensar, de querer.
A estética, do ponto de vista
filosófico, ao apontar-se como disciplina, procura salientar-se que ela
participa de uma visão global do ser. Considera-se que a beleza, a arte e a
experiência estética, são dimensões fundamentais de qualquer análise filosófica
que verse a existência.
A nossa vida assemelha-se a uma viagem.
Quando viajamos procuramos conhecer. Conhecer o rosto que é indefinido, de nós
mesmos. Há uma diluição da nossa identidade no corpo do mundo e é a paixão pelo
conhecimento que desencadeia a viagem, é a curiosidade atormentada, um
conhecimento que nos escapa continuamente, um saber amargo que se alcança, o
horror de enfrentarmos a nossa imagem em diluição. Por mais que percorramos
esta viagem vamos sempre notar a presença de uma ausência, a busca atormentada
da nossa própria imagem, a reconfiguração de si, criar, ser, pensar, como viver
na impossibilidade de definir definitivamente a configuração do sentido que
indicia o humano?
Uma hemorragia de sentidos, pensados
desde o interior, que se nos revelam sob a forma de obras de arte, onde nos
revemos.
Bibliografia:
Cortázar, Júlio, O Jogo do Mundo,
Lisboa, Cavalo de Ferro editores, 2008
Teresa Rolla