quarta-feira, 31 de março de 2010

Blackbird

Andamos todos à procura do mesmo. De sentido. Não passa disso.
Andamos todos à procura de um sentido invisível para aquilo que a racionalidade não nos consegue dar. As ruas não são as mesmas nem nos cruzamos com os mesmos pormenores, mas a forma é a mesma embora o conteúdo posso ser antagonismo puro.
Não procuramos certezas, só procuramos perguntas. Nas mais variadas formas que uma pergunta pode adquirir é sempre tudo, é sempre o que vale, o que pesa e o que desenha o mapa.
As perguntas daquilo que nos é desconhecido. O querer saber. O não aguentar não saber. Tudo isto acaba com um ponto de interrogação e essa é exactamente a fórmula da vida. Interrogação pura, mesmo quando nos achamos em cima de uma nuvem chamada certeza.
No meio de uma vida quantas perguntas são feitas?
No fim de uma vida quantas tiveram resposta?
E tudo isto é um texto, um diálogo entre dois seres que não têm respostas e que sobrevivem num mundo feito de perguntas.

'Blackbird' é exactamente um pássaro preto como são todas as perguntas para as quais não temos resposta. Pássaros pretos que voam em nós e que nos cobrem com a sua sombra. Sombras informes que nos consomem a alma e que nos levam o sossego, nos roubam a paz, petrificam-nos com um poder invisível. Somos comandados por interrogações e não temos consciência disso. Vivemos na eterna busca de uma satisfação que achamos existir algures. Longe ou perto. Chega uma altura em que a distância já não se mede, as réguas e os quilómetros deixam de ser um conceito com significado, tudo passa a tratar-se de uma busca incessante que a memória não deixa escapar. Um círculo em que habitamos fechados pela dúvida e pela incerteza.

Até que chega um dia em que o círculo se assume como claustrofobia e somos obrigados a agir. Por onde? Para onde? Mais perguntas.
Um ímpeto, um instinto, uma certeza disfarçada de vontade.
Decidimos procurar. É aqui que começa a viagem. Traçamos uma rota de incertezas e só nos resta avançar.
Una é essa personagem. Una é a procura desmedida. É o querer saber mais do que querer viver, para ela chegou o tempo em que viver implica saber. O que é ou quem foi.
Ou quem é por causa do que foi. Não é possível dizer de outra maneira. Una é a personificação do que somos hoje por causa do que fomos ontem. Una é a nossa dúvida hiperbólica. Todos temos dúvidas destas, a diferença é que para alguns é inevitável pensar nelas e para outros elas não merecem qualquer destaque.
Tudo depende dos olhos que estão a ver o mundo. Os teus ou os meus. Os da Una ou os do Ray. Nenhum deles ali foi parar pela mesma razão. Passada uma década e meia, é a razão que os levou ao passado que torna esta peça possível.

O passado como dois mundos vividos de forma diferente. O passado como antagonismo entre dois mundos que um dia partilharam o mundo. Realidades tão diferentes e tão a mesma. Talvez só no fim, juntando cada ponto solto da teia em que estamos envolvidos, consigamos perceber quem somos ou quem fomos. Una queria esta resposta. Ray nunca mais a procurou. Para Ray a realidade desse passado já não fazia o menor sentido no presente e no entanto foi incapaz de virar as costas a Una. Porque é no passado que ficam as nossas melhores falas e talvez a melhor parte do que somos. E às vezes essas falas são respostas que desejamos, ou que queremos muito calar com a força do tempo.
As duas realidades desta peça, a vontade de equacionar quem somos e o medo do que fomos, em tempos que agora já não fazem sentido. Mas que fizeram, tanto.

Um cenário desarrumado e sujo. Papéis amarrotados pelo chão. Latas vazias e atiradas para um canto. Mesas e cadeiras de plástico. Uma máquina de café noutro canto. Cacifos. Janelas de vidro fosco que apenas deixam ver sombras do que se passa do outro lado. Luz branca, ambiente de hospital. Cores, muitas cores sobre um pano negro de fundo. Cores confundidas.
Os actores movem-se neste espaço com passos rápidos e decididos.
O lixo acumulado pelo chão é remexido como demonstração de raiva por parte das personagens. Os caixotes do lixo são atirados contra a parede. A raiva explode e os espectadores deixam de ter papel activo. Tudo se passa em cima do palco. No meio da desarrumação desvendam-se segredos em ímpetos furiosos e derramam-se lágrimas genuínas de quem perdeu o sentido da vida.
Como se o cenário fosse um quadro exposto da alma daquelas personagens.
Elas também estavam desarrumadas, elas também tinham a alma cheia de cores sobre um fundo negro. Também viviam confundidas. Entre o passado e o presente, o lixo e a utilidade, o ambiente quente de um café e a luz fluorescente de um hospital, desenrolam-se as cenas. Os sentidos e as emoções recalcadas durante vários anos assumem o poder e desmascaram as personagens. Como se nenhuma delas quisesse partilhar o segredo que a trouxera até ali, nunca contam tudo, apenas afirmam espaços do tempo passado. A história vai-se desenrolando em capítulos perdidos de uma única cena. Até ao dia em que é preciso desarrumar mesmo tudo, esvaziar os caixotes do lixo contra a parede só e apenas para perguntar a quem nos pode responder.

TR




3 comentários:

  1. “Everything is simpler than you think and at the same time more complex than you imagine”, Johann Wolfgang von Goethe

    bj* espero que estejas bem

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  2. “…tenho frio, tenho mesmo muito frio… Sinto um arrepio dentro de mim que me faz encolher a alma… dobro-me sobre mim mesmo e procuro a razão do frio que sinto… sinto-me cheio de um vazio que se instala no meu cérebro e deste passa para o meu ser… Sinto-me entorpecer e as pernas dobram-se e enregelam… O frio que sinto faz-me tremer… não vejo sol dentro de mim e a lua passou já muito ao largo e não deixou rastos… As estrelas estão longe e não me iluminam o suficiente para aquecer o meu coração… É tudo em vão… Todo o esforço que faço para me manter à superfície ainda me magoa mais porque as forças me abandonam e o corpo rejeita energias que gasto nesta viagem… E é apenas a minha imagem… Mas olho para lá e não vejo nada que me faça regressar… E desejo cada vez mais sair, fugir mesmo sem saber para onde ir… não é dilema não saber o que aí vem… sabe-se que se está a ir nessa direcção e deixamo-nos ir como folha perdida nas águas turbulentas de uma sarjeta suja de pó e vazia também de tudo… Deito-me dentro de mim e adormeço no meu sonho sem dormir… é um sonho acordado de tão cansado que nem o sono sossega e não me dá trégua… Tenho frio, tenho muito frio… Sinto um arrepio de novo e mais uma vez me encolho e olho para dentro do copo que tenho na mão… é um copo vazio como eu e também está frio… peço a alguém que o encha de novo e dizem-me que não, que já bebi demasiado… mas eu sei que não, ainda consigo entender o que me é dito e porque razão ouço este imenso grito… Saio num tropeço dum trôpego andar… Passo pelo espelho e alguém do lado de lá olha para mim e sorri… é alguém que eu já conheci, alguém que já esteve aqui comigo, dentro de mim… nunca mais o vi… por onde andará?… No entanto, foi simpático, acompanhou-me até à saída… não o vi mais… não havia mais espelhos naquela sala daquele bar… Abri a porta de par em par… Respirei o ar frio da noite ainda mais quente do que o frio que eu sentia dentro de mim… Olhei o mar que se estendia para lá daquelas escadas que desciam para ele, ele que me esperava depois do abismo… olhei-o e ele riu-se numa risada tremenda que me fez encolher e de novo ver que já nada estava ali a fazer… Preciso de dormir, mas um sono que jamais termine… preciso de dormir e afinal o carro está ainda ali… é aquele preto… tem aros prateados nos faróis mas não tem luz, estão apagados como eu… A chave está na minha mão e abrir a porta não custa.. já nada me assusta porque o frio me tira a percepção da realidade… tenho apenas uma vontade, dormir, deixar-me ir e não saber nem como nem para onde…
    Tenho frio, tenho muito frio…”

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  3. O sentido é visível. As formas mudam. O ser nuclear é imutável. A satisfação suprema é a do corpo. É ilusão pensar-se no passado. Nada do que passou, passou. Tudo é hoje. O futuro agora!

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